Atravessa-se a fronteira em Marvão e ruma-se a Espanha para a sessão da noite em Carbajo, pequeno pueblo do distrito de Cáceres. A paisagem é escura como o breu, atravessam-se aldeias vazias e depois... caminhos sinuosos. São 22.30, hora espanhola, e na escuridão vê-se um ecrã ao longe. Parece que é o campo da bola de Carbajo. De repente, um drive-in. Algumas dezenas de carros e uma organização com muita gente com coletes refletores e máscaras a ajudar a estacionar. No ecrã está um aviso para se escolher a frequência e todas as regras de prevenção à covid-19..Esta sessão de autocine, como é traduzido o drive-in em Espanha, é apresentada em castelhano por Paula Duque, colombiana radicada em Marvão e diretora do festival. Ouvem-se no autorrádio palavras do fundamento deste 8.º Festival Internacional de Cine(ma) do Marvão e/y Valencia de Alcántara-Periferias que resumem uma vontade de união e intercâmbio de dois países. "O Periferias é para nos ajudarmos uns aos outros." Aqui, a expressão países irmãos faz sentido e o filme, o documentário vencedor dos Goya, Ara Malikian - Una Vida entre las Cuerdas, de Nata Morena, é recebido com os aplausos dos novos tempos: buzinadelas e sinais de luzes..De facto, tudo é "especial" num festival de cinema que quer promover o cinema de direitos humanos e do meio ambiente mas que aposta sobretudo em cinema de qualidade de autor. Neste ano, na tal edição que põe a palavra "especial" no programa, está a haver, além do drive-in, sessões online através de parceria com a Filmin e o cardápio inclui obras como Vitalina Varela, de Pedro Costa, Desenterrando Sad Hill, de Guilhermo de Oliveira, tributo a Ennio Morricone, e as três curtas de Realizadoras Portuguesas que ainda há bem pouco tempo se estreava no circuito comercial: Dia Feliz, de Sofia Bost, Ruby, de Mariana Gaivão, e Cães Que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles..Seja o que aconteça para os lados de Marvão há um respeito máximo pelas regras de saúde. Aliás, esta edição "especial" foi feita em franca colaboração com as autoridades de saúde de Espanha e de Portugal, "mas a DGS espanhola foi muito mais exigente. As regras são diferentes, em Espanha o uso da máscara é sempre obrigatório, mesmo dentro dos carros na sessão de drive-in... Fomos obrigados a eliminar a sessão de sábado em Zarza, na praça de touros, porque houve um surto de covid-19 em Valencia de Alcántara. Sabíamos que este tipo de coisas poderiam acontecer - as pessoas estavam com receio... Mas depois da pandemia as pessoas nesta região queriam sobretudo algum entretenimento, alguma animação. O que é ponto de ordem no nosso festival é levar filmes de qualidade a locais onde as pessoas não têm acesso a cinema. Nestes oito anos que existimos conseguimos pôr gente a ver cinema que nunca na vida tinham entrado numa sala. A nossa missão é levar literalmente o cinema às aldeias e às povoações desta raia", explica a diretora..Mágico foi deparar com a sessão esgotada de O Paraíso, Provavelmente, de Elia Suleiman, ao ar livre nas ruínas romanas de Ammaia. Esta comédia do Buster Keaten da Palestina foi projetada no serão quente da noite de sábado e foi abençoada com um luar mágico que realçava a belíssima iluminação do castelo de Marvão logo atrás da tela. Há noites assim... O paraíso num festival de cinema pode ser isto mesmo quando todos os espectadores (mais espanhóis do que portugueses) viam o filme com máscara sanitária. E por falar em magia, na sexta-feira passada o Periferias abria num quartel de bombeiros também numa aldeia encantada desta região, Santo António das Areias, com o belo filme de Oliver Laxe, O Que Arde, crónica de um fogo na Galiza. Nenhum outro festival no mundo tem a sua gala de abertura numa aldeia ao lado dos bombeiros....Feito com estrutura e orçamento limitados, o Periferias nasceu de um grupo de amigos de Marvão que formou a Associação Cultural Periferias. Os apoios maiores que recebe vêm de Espanha mas Paula Duque conta que a ideia é tentar o ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) para o futuro. Em boa verdade, quem visita este festival que faz sessões em estações de comboios abandonadas, na alfândega ou em castelos, sabe que o potencial é enorme. Carlos Baptista, programador principal, lembra que há um efeito de afeição imediato no espectador e salienta uma mítica noite em que se projetou Cinema Paraíso, de Tornatore, na Fontanheira, em que o ecrã estava em Espanha e as cadeiras em Portugal.."As pessoas dos dois lados da fronteira acarinham muito o Periferias. Vivemos este festival com muita paixão. No ano passado vendemos mais de seis mil bilhetes! Para terras tão pequenas e desertificadas é muito bom. As pessoas de Lisboa pensam que estamos tão longe, bem... estamos apenas a duas horas e meia!", conta Paula Duque, uma diretora que conseguiu colocar já o Periferias numa rede dos mais importantes festivais itinerantes de cinema..Estas sessões que celebram um verdadeiro espírito luso-espanhol continuam até esta terça-feira na raia, neste ano com menos convidados. Devido à pandemia os bilhetes devem ser adquiridos online através do site https://www.periferiasfestival.com/programa/. Ver cinema de manga curta ao ar livre em paraísos históricos é apenas um dos sortilégios deste festival.