O mais recente romance de Manuel Jorge Marmelo, Tropel, distingue-se entre a inutilidade de muitos livros recém-publicados e convida o leitor a fazer um exame de consciência e a questionar-se sobre o que faz para mudar o mundo. Tropel é esse convite e fá-lo sem se perder em situações menores..Sem facilitismos, começa assim: "Se temes os ursos, não entres na floresta." É um aviso ao leitor que dá início à leitura, sedutor o quanto baste para em seguida se confrontar com uma narrativa muitas vezes cruel e que de irreal tem pouco, tantas serão a semelhanças com a realidade de certas regiões da Europa Central que teimam em manter-se nos noticiários ao longo de décadas..Um romance que encaixa muito bem nestes tempos de pandemia, onde a literatura nacional não se mostra indignada ou sequer participativa além da vulgaridade. Tropel é uma tomada de posição muito pouco habitual entre os autores nacionais, ainda por cima feita com uma boa história, sobre o mundo em que vivemos..Este é um romance violento, que a própria capa exibe. A que se deve este grau de horror intencional? Escrever também é partilhar inquietações e assombros. Talvez possa ler-se Tropel como um romance violento e horroroso, talvez tão cruel e monstruoso como Os Miseráveis, de Victor Hugo, mas o verdadeiro pavor está na realidade que a ficção procura retratar. Creio que nada do que possa ser escrito e lido alguma vez chegará sequer perto do medo e do horror que sentem as vítimas reais da narrativa de perseguição e morte que está por trás deste romance. Nenhum de nós esteve à deriva no Mediterrâneo, nem atravessou uma das fronteiras deste mundo sem saber se chegaria vivo ao outro lado. Mesmo que os protagonistas deste horror cheguem a tentar escrever e descrever o que sentiram, o mais provável é que lhes faltem as palavras. Isto para dizer que a violência de Tropel é simplesmente uma forma de agarrar os possíveis leitores pelos colarinhos, de tentar sacudi-los e acordá-los, desassossegá-los para a existência de uma realidade que está aí, que faz parte do nosso mundo, mas na qual talvez nunca ponderemos devidamente, provavelmente porque, no conforto possível das nossas casas burguesinhas, nunca estaremos na posição de ter de arriscar tudo e, acima de tudo, a própria vida..Esta é uma narrativa de ficção, mas o que relata é quase uma não-ficção. De onde surge a ideia? A ideia surgiu de um conjunto de reportagens que li há talvez quatro anos, dando conta da existência de grupos xenófobos que operavam na fronteira da Bulgária, os quais se dedicavam, que se saiba, a capturar e expulsar migrantes. Eram genericamente descritos, por isso, como caçadores de imigrantes. O que fiz foi imaginar que a expressão "caçadores de imigrantes" poderia ser tomada à letra e que estas pessoas protagonizariam, com as próprias mãos, a mortandade que, de algum modo, os governos europeus vêm promovendo no Mediterrâneo há vários anos, conduzindo à morte muitos daqueles que acreditam na Europa e nos belos ideais humanistas dos discursos oficiais, demandando-a como saída e resposta para situações absolutamente desesperadas de guerra, destruição, fome, perseguição e morte..Como foi a investigação para este retrato da Europa Central que nos parece tão real? Lisonjeia-me que o retrato pareça real, mas o mérito da verosimilhança não deve ser creditado a uma investigação particularmente exaustiva. Nunca foi esse o objetivo. Esta história, se se alterar os nomes das personagens e dos lugares, pode ser contada em qualquer parte do mundo, nos EUA ou em Myanmar, mas também no Algarve. Székely é uma cidade imaginária, na qual me limitei a fazer convergir o medo face ao desconhecido que todos, de algum modo, sentimos, bem como os discursos de ódio dos verdadeiros caçadores de imigrantes deste mundo, quase todos estadistas engravatados em funções, os quais, como noutros momentos da história, manipulam os nossos medos e as nossas perplexidades para ascenderem ao poder..A composição das personagens obedeceu a um plano anterior ou foram-se apresentando ao escritor e exigindo presença em Tropel? As personagens foram aparecendo à medida que a história foi avançando. No início tinha apenas a figura desamparada de um adolescente confuso, assustado e levado a perseguir e a matar imigrantes, em parte por obediência, em parte por pressão social, em parte por incapacidade para pensar pela própria cabeça. Pareceu-me uma metáfora adequada para o insensato tempo que vivemos..Como reagirá o leitor a uma frase assim: "Naquela manhã não caçamos nenhum refugiado..."? Admito que, em alguns pontos da narrativa, o leitor pode sentir perplexidade e desconcerto. É, se quiser, um método para induzir uma leitura atenta e consciente. Não me interessam leitores que leiam esta ficção acriticamente, como quem assiste a uma telenovela ou a um reality show. Como disse antes, quis que a história de Tropel e a forma de a contar obrigassem o leitor a despertar do adormecimento, a usar a cabeça, a refletir e a perceber que estamos a viver um desses momentos da história da nossa civilização em que toda a indiferença é uma forma de conivência..Enganar os observadores internacionais quanto aos conflitos étnicos parece ser fácil. É a opinião do escritor ou "dava jeito" ao fluir da história? Os observadores internacionais, bem como as instituições que representam, correm o sério risco de não serem levados a sério quando vemos supostos Estados de direito a tentar impedir o socorro de seres humanos que correm perigo de vida no Mediterrâneo ou na fronteira entre o México e os EUA. Parece-me que a hipocrisia que preside às relações diplomáticas internacionais tem implicado um conjunto de perigosas cedências éticas, o que nos deve, se calhar, fazer equacionar a real utilidade de instituições que, tendo propósitos indiscutivelmente generosos, se burocratizaram e deixaram enredar no confuso novelo das pressões e dos interesses estratégicos das mais diversas potências. Eventualmente mais grave, este é um filme que já vimos antes e que, outra vez, ameaça não acabar bem..Pode haver finais felizes nessa parte do mundo ou a complexa situação de nacionalismos impede uma normalidade social? Julgo que esta tenebrosa história tem, felizmente, inúmeros finais felizes. Há seres humanos envolvidos neste trânsito que, como em outros períodos da história, conseguem atingir um porto seguro, contribuindo aí para o progresso da nossa civilização. A ciência, a medicina, a literatura e a filosofia estão cheias de casos assim, mas também a construção civil ou a limpeza das casas dos burgueses nos países ricos..Esta temática é quase virgem entre os escritores portugueses num tempo em que assistimos a vagas sucessivas de refugiados em busca da Europa. Porquê esta distração? Não sou a pessoa certa para responder a essa questão. Enquanto escritor, sou, antes de tudo, um cidadão com direitos e deveres. Acredito, por isso, que me cabe estar atento aos sinais e rumores que o mundo produz. Neste livro há a inquietação e o desassossego que a autocracia e o ódio pelo outro me suscitam. Há a vontade irrefreável de refletir sobre o mundo ao meu redor e de, muito modestamente, procurar contribuir para alterar alguma coisa. E há o receio de que estejamos, de facto, apenas a assistir à repetição da história, das páginas mais negras da história, sem que tenhamos sido capazes de aprender com os erros do passado..Até que ponto a literatura nacional "luta" para se manter fora da atualidade? Não sei se a literatura nacional luta ou deixa de lutar por alguma coisa. Estou distante dos salões onde isso eventualmente se discuta e, por isso, falo apenas por mim. Escrevo por prazer, por necessidade íntima e também por um imperativo de consciência. Mas espero que Tropel, sendo uma obra literária que corresponde a uma determinada conjuntura histórica, possa ser lido para além do jogo autista da atualidade, do mesmo modo que lemos hoje o 1984 sem a atualidade da ditadura soviética, ou O Deserto dos Tártaros sem o receio da invasão iminente. O tema principal deste romance é o medo e a perplexidade diante do desconhecido, comuns aos caçadores de Székely e aos primeiros humanos, os quais enfrentavam o negrume imenso da noite contando e pintando histórias em volta do lume. Foi este o impulso que forjou a nossa civilização. É dessa história que quero fazer parte..Manuel Jorge Marmelo.Porto Editora.149 páginas