Um direito fundamental: o direito a ser velho de ser inteiro

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De Séneca a Bobbio, passando pelo nosso Virgílio Ferreira, para lá de tantos outros, há um rasto de excelentes textos sobre a velhice. Sobre o que de bom ela é capaz de nos trazer mas também mostrando as abrasivas fragilidades que necessariamente carrega. Não vou, pois, sequer ensaiar qualquer tentativa de compreensão sobre as virtudes e as fraquezas do modo de ser velho. Vou antes enquadrar esse pedaço da vida de uma qualquer pessoa dentro da arquitetura política, social e jurídica de um Estado que se quer moderno, interventivo, curador e defensor dos direitos fundamentais da pessoa humana desde que se nasce até que se morre. Independentemente da questão filosófica ou religiosa que lhe é conatural, todos percebem que nascemos e vamos morrer. Mais. Que somos onto-antropologicamente - justamente dentro desta visão do mundo e das coisas e, por isso, não é intelectualmente correto fazer-se juízos redutores ou expansivos a partir daquele dado - os únicos seres que temos consciência da morte. Do fim. Ora, se no princípio, quando nascemos, enquanto crianças, pertencemos àquilo a que chamo o universo dos vulneráveis, não é menos verdade, nem menos imediatamente compreensível por todos, por sobre tudo quando olhamos aqueles que vivem já a velhice, que estes já estão, de igual jeito, dentro daquele mesmo e preciso universo onde a vulnerabilidade é a pedra-de-toque. Assim, temos um primeiro dado: a velhice é uma idade em que impera a vulnerabilidade.

Porém, perante este dado, o que se espera de uma comunidade organizada em um Estado moderno, interventivo, curador, e defensor, dos direitos humanos? Tentemos, agora, com este pano de fundo, ensaiar algumas respostas. Um Estado moderno deve tratar os seus velhos, os seus maiores, não como crianças que precisam de mimos, mas antes, e definitivamente, como pessoas com dignidade inteira. Nada há mais repulsivo, de um ponto de vista ético e moral, do que ver uma pessoa velha ser tratada de uma maneira ridiculamente infantil. O que se vem de dizer não colide minimamente, antes pelo contrário, com o cuidadoso carinho, a amável sobriedade, a solidária interiorização de me pôr no lugar do outro, a inteligente cumplicidade na aceitação das fraquezas, o moderado ou necessário acompanhamento físico que todos devemos devotar àqueles que são, simbólica ou realmente, nossos pais, avós ou mesmo bisavós.

A esperança de vida, felizmente, aumentou. E aumentou rápida e extraordinariamente, por mor, entre outras coisas, do fantástico avanço da medicina e de novas políticas públicas de saúde, para só referirmos o mínimo. Isso é bom. Mas tem consequências. E a primeira salta mesmo à vista desarmada. As normais estruturas de apoio, que já eram frágeis para não dizer quase inexistentes, a esse universo de pessoas vulneráveis, quer no setor público quer no domínio privado, não respondem de modo eficaz e de jeito razoável às necessidades que se apresentam. As alterações foram bruscas. A pirâmide demográfica sofreu modificações profundas no seu perfil. Todos o sabemos. Por isso, é urgente concretizar políticas públicas que tenham por finalidade a defesa e a concretização de tais valores. Não basta a retórica da exaltação dos valores em causa. É absolutamente necessário o comprometimento de efetivas políticas públicas. E ao irmos por este caminho mais não fazemos do que chamar a terreiro a característica ou a qualidade interventiva de um Estado de direito moderno. Longe vai o tempo, em todos os domínios, das meras políticas públicas reativas. A agilidade, a simplicidade e a eficácia, sem jamais perder o norte no domínio dos valores, são as virtudes cardeais dos Estados modernos interventivos e curadores. Sim. Estados curadores. Curadores no seu sentido mais profundo ou mesmo na sua expressão mais leve ou epidérmica. Porquanto se é dever do Estado curar de todo e qualquer cidadão, impõe-se um dever especial de cuidado para com todos os que cabem na grande galáxia dos que são vulneráveis. E nela estão todos os que pela lei natural da vida mais perto estão de se "libertarem da lei da morte".

Ora, se tudo o que se acaba de discretear já resulta intocado à luz do que anterior e racionalmente fomos apontando como característica ou sinal dos nossos tempos, isto é, dentro do horizonte de um Estado moderno, interventivo - que não invasivo, porquanto se o fosse deslizaria facilmente para a modelação de um Estado paternalista com toques de autoritarismo - e curador, mais força ou ressonância adquire se tudo cobrirmos com o manto de um direito fundamental. E este direito fundamental, o direito a ser velho de ser inteiro, implica: o direito a ser tratado com dignidade humana, sempre; o direito a ser visto e valorado como ser inteiro, por mais maltratados que se mostrem o corpo e o espírito; o direito a ser respeitada integralmente a sua vontade; o direito a que a sua voz cidadã seja ouvida e que tudo se faça para que tal suceda; o direito a não ser visto ou tratado como cliente, consumidor ou o que quer que seja, neste linguajar tecnocrático, quando entra em contacto com a administração, nas suas plúrimas vestes, mas antes a ser considerado cidadão de corpo inteiro, com nome e apelido próprios; o direito a não ser tratado depreciativamente como "velhinho", mas, pura e simplesmente, como velho ou idoso (idoso, palavra, aliás, pouco feliz da lei); e o direito a sempre poder dizer não ou sim no que toca às suas decisões mais fundas. Sim, este direito fundamental não pode nem deve ser esquecido por ninguém, muito menos pelo Provedor de Justiça, na medida em que são a Constituição, a lei e a sua própria consciência moral que lhe impõem o cumprimento do dever de defender os direitos fundamentais. Todos os direitos fundamentais.

* Provedor de Justiça

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