Um dia a Suécia tinha que dar mau exemplo
As hordas de manifestantes que este fim-de-semana saíram à rua outra vez em várias partes da Califórnia, exigindo que o governador Gavin Newsom "liberte" o estado da tirania dos encerramentos, fazem pouco caso das recomendações dos especialistas de saúde. Os avisos dos investigadores sobre os riscos da pandemia de covid-19 caem como uma brisa de água no solo árido, incapaz de humedecer a terra sedenta.
A revolta dos cidadãos contra os intelectuais vinha borbulhando há vários anos e chegou agora ao seu pico: nem a ameaça de um vírus mortal a desanima. Pelo que não esperávamos era o fenómeno contrário, ocorrendo num dos países mais cotados entre o grupo de sociedades mais desenvolvidas do mundo.
Na Suécia, onde o responsável de comunicação de uma grande empresa me disse que era incompreensível para os suecos um deficit das contas públicas como o que afligia Portugal na altura, a covid-19 foi encarada com menos alarme pela população. Os responsáveis de saúde pública emitiram orientações pouco gravosas e as pessoas seguiram os seus conselhos. Notem isto: perante uma pandemia que virou o mundo ao contrário, a população sueca acatou sem pestanejar a orientação minimalista das autoridades, fazendo a sua vida comme d"habitude. Em vez de cuspirem nos intelectuais, como os manifestantes na Califórnia, aceitaram tudo o que os seus especialistas disseram, independentemente do caos que se gerava à sua volta. Foi o que o meu ex-companheiro de entrevistas hollywoodescas Erik Augustin Palm chamou de "cultura de conformidade" e "auto-imagem de excepcionalismo."
Notável. Quando todos recolhíamos a casa e víamos parques a fechar e lojas encerradas, os suecos continuavam a ir beber os seus schnapps às esplanadas, absorvendo o regresso do sol da Primavera. Das máscaras e luvas que esgotavam nos outros países nem sinal nas caras e mãos descobertas dos suecos. As escolas para crianças até 16 anos mantêm-se abertas.
É certo que "distanciamento social" podia ser a descrição do modo de vida normal dos suecos, cuja vida familiar e cultural é menos próxima que a nossa. O governo pediu às pessoas que ficassem mais em casa e se possível trabalhassem remotamente, mas não houve confinamento. Não se baniram os apertos de mãos nem se puseram fitas no chão a indicar a distância de segurança para o próximo. Não houve bandeiras nem cantorias nas varandas. E a Suécia tornou-se o exemplo favorito dos anti-quarentena para mostrar que era possível combater a covid-19 sem medidas de confinamento com graves consequências para a economia e a sociedade.
A realidade conta, no entanto, outra história. Com uma população similar a Portugal - 10,4 milhões de habitantes - num território muito mais vasto, com menor densidade populacional, a Suécia contabiliza à data de hoje 22.721 casos de infecção e 2.769 mortos. Tem uma das taxas de mortalidade por covid-19 mais elevadas do mundo, e muito superiores às dos vizinhos escandinavos: a Dinamarca regista 493 mortos, a Finlândia 240, a Noruega 214 e a Islândia 10. É também o país que menos testes tem feito à população.
Isto poderia ser encarado como o preço a pagar por uma estratégia que pretende chegar mais depressa à tão almejada imunidade de grupo sem as consequências económicas que os outros países estão a enfrentar.
Todavia, também aqui a premissa falha. Depois do aviso do Ministério das Finanças, as previsões do banco central Sueco, Riksbank, apontam para uma contracção da economia em 2020 similar às dos congéneres europeus. O banco traçou dois cenários, um mais pessimista que outro, sendo que em ambos há uma queda brutal do PIB: o melhor é uma contracção de 6,9% com recuperação rápida em 2021 e o pior é uma derrocada de 9,7% e uma recuperação lenta em 2021.
A ideia de que a recessão é fruto das medidas dos governos para mitigar a propagação da covid-19, e que pode ser impedida se tais medidas não forem tomadas, é um mito. Primeiro, porque a economia dos países está interligada e seria estranhíssimo que um país continuasse no caminho de crescimento enquanto todos os outros se viam a braços com recessões.
Depois, porque muita da actividade económica depende da mobilidade internacional de pessoas, que está severamente restringida. Só o cancelamento de conferências, festivais e ajuntamentos penalizaria a economia de um país. Junte-se o medo dos consumidores, a ausência de turistas, a disrupção na cadeia de suprimentos, a redução das exportações, e percebe-se que esta fila de dominós não poderia ficar intacta, mesmo com as autoridades a ignorarem as indicações de todas as agências de saúde do mundo.
Em contrapartida, muitas mortes poderiam ter sido evitadas. O problema de deixar andar é entupir os hospitais num pico repentino, o que se traduz na incapacidade de tratar não apenas os doentes com covid-19 mas também de dar assistência a pessoas com outros problemas urgentes. Arriscando ainda médicos, enfermeiros e técnicos de laboratório, profissionais de saúde essenciais que não se substituem facilmente se forem infectados.
Adicione-se ainda o efeito de larga escala de ter muitas pessoas doentes ao mesmo tempo. Muitos dos que adoecem com covid-19 não precisam de ser hospitalizados mas têm um longo caminho de recuperação em casa. Há relatos de pessoas a lutarem durante várias semanas no pico da infecção e depois outras tantas em convalescença. Mais a quarentena que se segue até testarem negativo. Uma sociedade que não faz distanciamento social perante um vírus tão contagioso não vai evitar a recessão. Quem está de cama não anda às compras. Quem passa a noite a tossir e a transpirar não se levanta de manhã para trabalhar. A ideia de que o desconfinamento é a solução para a recuperação económica não faz sentido numa pandemia.
A única coisa que pode salvar a economia é o fim da pandemia. Como este não se antevê para os próximos tempos, teremos que seguir com cuidado. Meter o pé na água a ver se está fria e ir entrando devagar, até o corpo se habituar, em vez de dar uma corrida e entrar de chapa. Deixemos os choques térmicos e narizes raspados para os dias de praia num futuro diferente.