Um curso que dá asas, num país ainda a começar a levantar voo
A média de candidatura de 19,78 valores - uma das melhores do país - não tem sido sinónimo de facilidades para Catarina Lobo no curso de Engenharia Aeroespacial. As aulas mal começaram mas a estudante de 17 anos, natural de Vila Nova de Gaia, assume "já notar" a bitola elevada da formação que, segundo os dados do acesso ao ensino superior, tem a nota de último colocado mais elevada do país há dois anos consecutivos.
"É preciso muito estudo, muito trabalho, porque o curso é exigente. É muita matéria e o ritmo é rápido", conta Cláudia. A vantagem, acrescenta, é que os colegas, vindos de todo o país - cerca de 80% dos ingressos neste ano são de alunos de fora da região de Lisboa -, também são bastante acima da média: "De uma certa forma nota-se que somos todos bons alunos", diz. "É um ambiente diferente. Temos um ritmo de aprendizagem muito rápido e isso nota--se, até na discussão de ideias uns com os outros, que acaba por nos beneficiar a todos na nossa aprendizagem."
Mesmo com esta seleção dos melhores alunos do país, todos os anos, conta Luís Campos, coordenador do curso, há um número "não muito elevado" de estudantes que acabam por optar por mudar de formação por não conseguirem acompanhar o ritmo. "Nem sempre um excelente aluno no ensino secundário consegue manter esse nível no ensino superior", diz. Nada que preocupe o Instituto Superior Técnico (IST), que rapidamente preenche os lugares deixados vagos com os alunos que, no concurso, tinham ficado à porta por algumas décimas de diferença.
Para muitos portugueses terá sido surpreendente a ascensão de uma área, que alguns continuarão a considerar um tanto ou quanto exótica, ao topo das preferências dos alunos portugueses. Mas para este professor universitário, esse facto não só nada tem de surpreendente como até dificilmente poderá ser considerado uma novidade.
"A Engenharia Aeroespacial no Técnico começou desde 1991 e, desde o início, teve a nota mais alta de todas as engenharias em Portugal. Só que as pessoas não notavam muito isso porque havia a Medicina", explica. "Mas todos os alunos entravam em primeira opção e o número de candidatos sempre foi muito superior ao de lugares, cerca do triplo. É importante, porque significa que vêm para este curso porque gostam."
Quanto à empregabilidade, se algum diplomado deste curso estiver atualmente sem ocupação, será seguramente por decisão pessoal. "Havia pais de alunos que vinham falar comigo e diziam-me: "O meu filho tem média para entrar em Medicina e quer ir para Aeroespacial. Depois tem emprego?", conta Luís Campos. "E a minha resposta era que, se for para Medicina, tem emprego em Portugal, se for para Engenharia Aeroespacial tem emprego em toda a Europa. Não conheço nenhum engenheiro aeroespacial desempregado ao longo de 25 anos de curso", garante.
Preparados para tudo
Uma das explicações para esta procura dos diplomados está na diversidade de conhecimentos adquiridos ao longo do curso: "A engenharia aeroespacial é uma das áreas mais interdisciplinares que existem. Se pensar num avião ou num satélite tem as tecnologias todas: tem a dinâmica para o voo, tem aerodinâmica, tem propulsão, tem estruturas, tem materiais, tem fabrico, tem eletrónica, tem computação, tem telecomunicações, tem sistemas elétricos, tem quase tudo", conta.
No caso do curso do Técnico, acrescenta, o facto de a instituição ter optado por recorrer aos conhecimentos dos professores de diferentes departamentos na altura do lançamento da formação, em vez de importar especialistas estrangeiros, acabou por contribuir para aprofundar esse contacto dos alunos com as diversas áreas e prepará-los para várias frentes.
"Os engenheiros aeroespaciais têm uma grande procura. Um engenheiro do ramo de aeronaves pode trabalhar como engenheiro mecânico", ilustra. "Não é essa a nossa finalidade mas, por exemplo, a indústria automóvel, o que é que eles precisam de um engenheiro? Automóveis mais leves, melhor aerodinâmica, menor consumo. De onde é que vem a tecnologia? Vem do aeroespacial. A eletrónica num avião. Tem de ser miniaturizável, tem de resistir a um ambiente hostil. Tudo isso é útil a diversos setores", acrescenta.
Na realidade, defende, a dificuldade muitas vezes foi evitar que os alunos se precipitassem nas decisões que tomavam em relação aos seus futuros: "Havia alunos que aceitavam ofertas logo no início do curso. O que nós lhes dizemos é: não aceitem nenhum emprego, porque não vão ter falta de empregos quando se formarem e aproveitam menos a formação que têm no Técnico."
A combinação dos fatores exigência e diversidade é sublinhada pelos antigos alunos como um dos aspetos decisivos nos seus percursos profissionais: "O elevado nível de exigência do IST, e a diversidade de disciplinas do curso permitiram-me ganhar a destreza e capacidade para realizar tarefas em projetos que englobam diferentes áreas, desde a definição e análise de testes de materiais, passando pela análise estrutural e de escoamento de fluidos, até à gestão de projetos multidisciplinares", conta Luís Antunes, atualmente na Optimal, uma empresa que desenvolve estruturas de compósito para áreas que vão da indústria aeronáutica à vela. "Por outro lado", acrescenta, "o grau de exigência e de trabalho autónomo que foi necessário durante a formação académica permitiu-me potenciar a resiliência e o pensamento crítico para levar a bom porto os projetos em que profissionalmente vou trabalhando", acrescenta.
Mas se as opções sempre foram boas para os diplomados, durante muito tempo quem optou por manter-se ligado aos setores do aeroespacial e da aeronáutica teve de optar por um percurso fora do país, porque as alternativas dentro de portas não abundavam.
Pedro Raposo, atualmente em funções executivas no departamento comercial da OGMA, em Alverca, fez parte de uma das primeiras gerações dos diplomados do curso, e ainda se lembra da forma romanceada como estes engenheiros eram vistos no país em meados da década de 1990. "Um jornal fez uma notícia sobre o nosso curso e fizeram umas ilustrações de fatos de astronautas com a minha cara e a de um colega de curso", conta.
Por opção, este engenheiro fez boa parte do seu caminho fora do país: "Os primeiros quinze anos do meu percurso profissional foram feitos no estrangeiro." Passou pela Airbus, primeiro em Bristoll, no Reino Unido, e depois em Madrid, depois continuou ligado à Aeronáutica mas evoluiu para funções comerciais, de consultoria, e desenvolvimento de negócios através das quais regressou há dois anos ao país a convite da OGMA. "É o meu primeiro emprego em Portugal", regista.
A experiência internacional é uma espécie de marca de ADN da maioria dos diplomados no curso. E continua a ser incentivada pela própria instituição, que tem parcerias com grandes universidades, empresas e instituições estrangeiras, da Agência Espacial Europeia à Airbus. Muitos acabam por fazer carreira lá fora e, segundo Luís Campos, "o trabalho que desenvolvem noutros países é a prova da qualidade da formação que tiveram".
Mas regressar ao país também já começa a ser opção para alguns. "O panorama mudou muito. Portugal é um país diferente, a economia é diferente, o setor é diferente. Existe uma dinâmica muito melhor para quem se forma hoje em dia", diz Pedro Raposo. "Quando acabei o curso as opções eram muito escassas e diria até pouco atrativas, o que fez que muitos de nós nos aventurássemos a ganhar experiência internacional no estrangeiro."
Hoje, há até quem já consiga praticamente começar a carreira em Portugal. João Freitas, também engenheiro na OGMA, trabalhou na Airbus, em Madrid, na altura em que estava a preparar a dissertação de mestrado. "Tive a oportunidade de trabalhar no C295, que nós montamos aqui." Mas depois dessa experiência regressou de imediato ao país. "Acabei por fazer a minha tese [de doutoramento] com a TAP, depois candidatei-me aqui, à OGMA, para as montagens. Surgiu uma oportunidade e tenho estado aqui desde 2015."
Além de trabalhar em Portugal, consegue manter-se ligado às funções para as quais foi treinado em primeiro lugar, dando suporte técnico desde a conceção de componentes para a indústria até à correção de falhas detetadas. "Temos muitos desafios diários." "Se existe um problema com alguma componente, cabe-nos encontrar a solução. Quando há pedidos específicos, ajudamos a concretizá-los. No caso de um avião militar, ilustra, uma força aérea quer assim, outra quer de outra forma. E nós, engenharia da OGMA, definimos como é que queremos fazer essa montagem. O cliente diz-nos onde temos de chegar e nós definimos internamente o processo."
O projeto do avião militar de transporte KC 390, da Embraer, para o qual contribuíram decisivamente a OGMA e os engenheiros do CEiiA, um centro de excelência de engenharia e desenvolvimento de produtos lançados pelo governo português no final dos anos 1990, é um dos exemplos da capacidade dos engenheiros portugueses para se afirmarem nos altamente competitivos setores aeronáutico e do espaço, não só os diplomados do IST mas também - sublinhe-se - os formados pelo "rival" curso de Aeronáutica da Universidade da Beira Interior e pela própria Academia da Força Aérea.
Há outros exemplos, nomeadamente novas empresas que têm surgido nos últimos anos, fruto da iniciativa de diplomados: "Nesta área da aeronáutica e do aeroespacial é muito importante que os decisores políticos apoiem as iniciativas que as próprias empresas do setor têm vindo a desenvolver nos últimos anos, como são exemplo disso a PEMAS, a DANOTEC e a PROESPAÇO, e mais recentemente o cluster AED Portugal que une as três anteriormente referidas", ilustra Luís Antunes.
O envolvimento de Portugal em projetos da Agência Espacial Europeia, sobretudo ao longo da última década, tem sido um dos motores deste desenvolvimento. Atualmente, o ambicionado AIR Center nos Açores (ver entrevista), conjugando competências nas áreas do espaço, oceanos e clima, é uma das grandes apostas do governo português, incluindo a hipótese de vir a ser desenvolvido um pequeno lançador de satélites.
Cultura "de chave na mão"
Do ponto de vista de Luís Campos, em termos de preparação para lidar com o estado da arte na inovação tecnológica, estes engenheiros estão mais do que preparados. "Os nossos alunos vão para as grandes empresas e consórcios, empresas com as quais fazemos investigação. Estamos perfeitamente integrados no meio aeronáutico internacional", defende. "O próprio corpo docente, acrescenta, "se não fizesse investigação, não tivesse projetos internacionais, provavelmente não conseguiria ensinar um curso de nível internacional".
O que continua a impedir que o próprio país aproveite melhor este grupo de cidadãos altamente qualificados é, na opinião deste académico, a falta de visão estratégica a longo prazo: Portugal poderia tirar mais partido, e devia tirar mais partido", defende. "Não tira porque nunca houve uma política coordenada a nível nacional de desenvolvimento aeronáutico. A nossa política é uma política de satisfação das necessidades a curto prazo", considera.
Ou, como também a define, uma política "de chave não mão": "A TAP preciosa de uns aviões, compra-se. A soberania nacional necessita que se compre uns aviões para a Força Aérea, compra-se." A alternativa, defende, é apostar na participação em consórcios que desenvolvem os equipamentos: "A Espanha tem 20% do Eurofighter. Quando forem comprar, é investimento interno. E quando for exportado, tem 20% das exportações", ilustra, considerando que Portugal tem engenheiros capazes de participar "em todas as fases" do desenvolvimento.
Regressamos a Catarina Lobo, a "caloira" de Aeroespacial. Onde se imagina esta aluna no final do curso? "Gostava de trabalhar na área da Engenharia Aeroespacial", diz. Onde? "É importante ter uma experiência no estrangeiro mas, a longo prazo, ficar em Portugal seria a minha primeira opção."