Um cineasta que procurou renovar os modelos tradicionais
O seu nome fica ligado à história da produção cinematográfica portuguesa dos últimos 50 anos, a começar pelo movimento renovador do Cinema Novo: José Fonseca e Costa faleceu na manhã de ontem, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vitimado por uma pneumonia, na sequência de uma pré-leucemia - contava 82 anos.
Nascido no Huambo, Angola, a 27 de junho de 1933, mudou-se para Lisboa em 1945. Entre 1951 e 1955, estudou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, mas a sua dedicação ao mundo do cinema fez que não concluísse o curso. Entre as suas primeiras atividades cinéfilas incluem-se a animação cultural no Cineclube Imagem (cuja direção integrou) e a crítica de cinema nas revistas Imagem e Seara Nova.
Logo após a fundação da RTP (1957), ficou classificado em primeiro lugar num concurso para o lugar de assistente de realização, mas a polícia política (PIDE) acabou por impedir a sua entrada nos quadros da empresa. Em 1960, informações provenientes da PIDE fizeram que lhe fosse recusada uma bolsa de estudo do Fundo do Cinema Nacional para frequência de um curso de cinema no estrangeiro. Seria mesmo encarcerado, por duas vezes, acusado de atividades de oposição à ditadura salazarista.
A sua formação acabou mesmo por incluir um período decisivo no estrangeiro, estagiando em Itália, como assistente, na equipa de um dos filmes mais importantes da revolução temática e estética então em curso no cinema europeu: O Eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni, com Monica Vitti e Alain Delon.
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Ao regressar, em 1964, à semelhança de outras personalidades do cinema português, produziu e dirigiu muitos títulos de cinema publicitário. A curta-metragem A Metafísica dos Chocolates (1967), inspirada em Fernando Pessoa, terá sido o seu primeiro trabalho verdadeiramente pessoal.
Foi um dos profissionais envolvidos no Centro Português de Cinema (inclusive como dirigente), entidade que, a partir de 1970, graças ao apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, desempenhou um papel decisivo na dinamização da produção cinematográfica. Seria um dos quatro primeiros autores apoiados pelo CPC, a par de Manoel de Oliveira (O Passado e o Presente), António-Pedro Vasconcelos (Perdido por Cem) e Alfredo Tropa (Pedro Só). Fonseca e Costa realizava, assim, a sua primeira longa-metragem, O Recado (1972), crónica centrada na personagem de Lúcia (Maria Cabral, atriz revelada dois anos antes em O Cerco, de António da Cunha Telles), uma mulher cuja história amorosa está simbolicamente marcada pelos mecanismos de repressão do Estado Novo.
O filme seguinte, Os Demónios de Alcácer--Quibir (1977), envolve os mais remotos assombramentos da história de Portugal, encenando num registo assumidamente antirrealista a encruzilhada de um país à procura da sua identidade; no elenco, cruzam-se nomes tão diversos como João Guedes, António Beringela, Ana Zanatti, Artur Semedo (também produtor) e Sérgio Godinho (autor da música).
As dissidências pós-25 de Abril refletiram-se também no Centro Português de Cinema, cuja atividade terminou em 1978. No labirinto de diferenças que marcavam (e marcam) o cinema em Portugal, surgiu uma vontade de revalorização de alguns modelos tradicionais de narrativa. Fonseca e Costa revelar-se-ia um autor nuclear nessa dinâmica através de Kilas, o Mau da Fita (1981), paródia policial de enorme sucesso que é, ainda hoje, o seu filme mais conhecido; a personagem do herói "desenrascado" que dirige um gangue mais ou menos desastrado corresponde também ao momento de maior popularidade cinematográfica do ator Mário Viegas.
O seu trabalho prosseguiu essa lógica de recuperação de matrizes populares, por vezes integrando atores (portugueses ou não) bem conhecidos. Assim aconteceu no melodrama Sem Sombra de Pecado (1983), com a espanhola Victoria Abril, ou ainda na adaptação do romance de José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães (1987), com um elenco liderado por Raul Solnado e Assumpta Serna, outra atriz do cinema espanhol.
Sempre marcados por uma calculada oscilação entre drama e ironia são ainda títulos como A Mulher do Próximo (1988), O Fascínio (2003) e Viúva Rica Solteira Não Fica (2006). Menos típicos de tal oscilação, embora não menos pessoais, destacam-se Os Cornos de Cronos (1991), uma amarga visão do envelhecimento, e a crónica sobre a resistência antifascista Cinco Dias, Cinco Noites (1996), baseada no romance de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal).
Fonseca e Costa dirigiu a Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisuais, presidiu ao conselho de administração da Tóbis Portuguesa e integrou o conselho de opinião da RTP. Deixa inacabado, embora em fase adiantada de rodagem, o filme Axilas, produzido por Paulo Branco e baseado num conto de Rubem Fonseca. Distinguido em outubro de 2014 com um prémio de carreira atribuído pela Academia Portuguesa de Cinema, expressou nessa altura uma visão muito cética do estado das coisas no cinema português: "O ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] é o reino da burocracia, das portarias salazarentas, dos regulamentos mirabolantes. A burocracia mata a criatividade. A criatividade devia matar a burocracia, a criatividade somos nós."