Um Britten experimental e humanista no São Carlos

Luís Miguel Cintra regressa à encenação de ópera com "The Rape of Lucretia", de Benjamin Britten. Récitas hoje, amanhã e no dia 5
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Uma ópera de câmara que “se desconstrói a si própria na sua linguagem” e que “ousa mostrar claramente como vai tateando em vários sentidos diferentes”, eis como Luís Miguel Cintra define The Rape of Lucretia (1946), composta por Britten logo a seguir ao Peter Grimes e que tem hoje estreia portuguesa (20.00) no São Carlos. A história provém da Antiguidade Clássica e o fulcro da mesma suscita debate desde então, mas para o encenador ele é límpido nesta obra: “Não há qualquer violação. Lucrécia entrega-se voluntariamente num momento em que ‘escapa’ à sua própria personalidade, mas a noção de que fez algo de ilícito e o remorso e dor levam-na posteriormente à autonegação e a matar-se.” Argumento para esta convicção está na música: “Ela não podia ser mais clara nesse aspeto. Tem tal poesia e lirismo nesse momento, que aquilo só pode ser uma cena de amor!”

Para ele, o (suposto) violador (Tarquinius) é “um inconsciente, inclusive do valor das ações que comete. Um jovem em aprendizagem, leviano por isso mesmo, e um sedutor.” O facto de a obra permitir tais nuances nos protagonistas, diz, “gera uma espécie de negação da divisão entre bem e mal, um esbatimento, como se a dramaturgia desdissesse as falas das personagens”.

Este desdizer é aliás recorrente: “Há processos de distanciação a operar a vários níveis aqui. É algo de muito inglês, o contínuo dizer/desdizer, a ironia permanente. E mesmo o Coro invocar a moral cristã, forçado e despropositado como é, funciona como distanciação face a essa mesma moral.” Esclarece: “É como se a obra revelasse a ele, Coro, que a humanidade é o próprio Cristo, que ela é capaz de se regenerar a si própria, de se transformar, de dar o passo em frente.” Classifica isso de “o lado de esperança que Britten associa, bem ou mal - a meu ver, bem - com o cristianismo.”

Refere ainda em seu auxílio “uma frase que acabou por não ficar no libreto e que dizia não ser pecaminoso um amor em que o ser não está dividido, quando envolve a totalidade da personalidade, e que pode coexistir com um amor mais casto. O que é uma visão muito moderna e que reforça o ponto de vista humanista da ópera.”

Do indivíduo para a sociedade, Luís Miguel Cintra fala de “uma obra política exemplar, na sua atitude e na relação que estabelece com o público”. Este, na sua leitura, é colocado numa “tensão que o deve levar a reconstruir e analisar ele próprio o labor do compositor ao fazer”. Regressamos ao tal “efeito de estranheza” que, diz, “nos convida fraternamente a um esforço de análise”.

O fraternal espelha-se outrossim na democracia da obra: “Há uma distribuição igualitária de papéis, todos igualmente interessantes, e mesmo a música denota essa democracia: ouve-se cada instrumento distintamente”, no que vê “uma afirmação do poder da arte e da beleza e da função da arte na construção da sociedade”.

Mas o lado político da obra (o pano de fundo é o fim da monarquia etrusca e início da República Romana) “é democraticamente equilibrado com os outros temas tocados pela ópera”, dos quais destaca “a sexualidade e a culpa associada à mesma”.

Numa história que tanto lida com moral, a moral da história, no final, “é forte pela atitude mais que pelo conteúdo do que está a acontecer”. Uma atitude “muito frontal de desafio ao público, com todos os cantores em cena e querendo passar uma mensagem”, que resume assim: “A vontade e a capacidade de tomar partido e posição perante os outros.”

Teatro Nacional São Carlos

Dia 2 (20.00), 3 (16.00) e 5 (20.00)

Bilhetes de 10 a 40 euros

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