A casa dos meus avós transformou-se na minha casa

O primeiro contacto foi em 2004 e foi amor à primeira vista. A viver em Lisboa desde 2016, primeiro morei em Alfama e depois em Alvalade. E cada vez me sinto menos estrangeiro na cidade.
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Li, já não me lembro onde, que para um brasileiro ir a Portugal é como visitar os avós. E não há definição melhor. Casa de avô e avó é ao mesmo tempo diferente e familiar. A mobília é escura, sisuda, mas uma cadeira,, mesmo que pareça um trono ainda assim é uma cadeira. O vô passa o almoço a falar como os poetas do liceu, palavras resgatadas de um longínquo dicionário, intercaladas por mesóclises, mas não vem ao caso, pois quando a vó serve a sobremesa nada mais interessa, nem se a mesa da sala é maior do que a de pingue-pongue do clube nem o chapéu engraçado da rapariga pintada no fundo do prato. O tempo parou no relógio, uma versão miniatura do Big Ben. O cuco emudeceu. O mundo move-se lentamente, na órbita dos eflúvios que emanam do pastel polvilhado com açúcar. E após a primeira mordida, tem-se a certeza de não se ser um estranho num lugar distante, mas de se estar entre amigos, seguro, em família. Justamente, como me sinto em Lisboa.

Vivo em Lisboa há quatro anos ou desde o verão de 2016, pois dito assim soa mais romântico, condizente com o estatuto de uma relação antiga e nem sempre apenas filial. Tudo começou em 2004, num stopover da TAP após a cobertura dos Jogos de Atenas. Foi amor à primeira vista, um jovem adulto guiado pela experiente senhora aos seus encantos, dois perdidos numa noite suja, altos no Bairro Alto. Parti com juras de voltar. E assim o fiz em 2006, depois do Mundial da Alemanha - o stopover da TAP sempre a nos alcovitar - acolhido pela cidade como uma zelosa concubina à espera do brasileiro tranquilo, ansioso por um colo onde pousar o corpo após uma viagem de negócios. O caso ficou sério e em 2013 apresentei-a aos meus pais. Em 2014, um novo retorno, agora em lua-de-mel. Lisboa, sempre compreensiva, nunca ciumenta, abençoou a união e, em 2016, foi a vez de os filhos a conhecerem e também se encantarem.

Em 2016, por sinal, aterrei em Lisboa em duas ocasiões. A primeira, em janeiro, numa incursão de reconhecimento de terreno. Já tencionava me mudar, mas era preciso antes espreitá-la no inverno, fria e sombria, despida do sol, sem a maquilhagem do verão. Descobri beleza em sua palidez e que o cinza também lhe caía bem. Cheguei no dia em que Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito, um domingo de eleições discretíssimo para os padrões brasileiros, ainda mais num Brasil conturbado politicamente. Ventos do passado que voltavam a ameaçar a democracia, ventos que me levaram a decidir pela mudança de país, de vida. Em setembro, a cidade ganhava novos moradores.

Em Lisboa, morei primeiro em Alfama, e por um motivo simples: lembrava-me a cidade onde vivera a infância, Olinda, igualmente secular, cortada por íngremes ladeiras e vielas estreitas. Olinda das várias colinas e, no topo de cada uma delas, uma igreja, todas reverentemente apontadas para a Sé. Olinda, como Alfama, margeada pela imensidão azul, o perfume da maresia a entrar em casa sem bater, como um velho amigo. Mal me mudara e Alfama já era desde sempre o meu lar, e talvez isto explique o olhar enviesado ao motorista do táxi que nos trouxe de Portela ao questionar o motivo da escolha por um bairro tão "manhoso".

Alfama abrigou a minha gestação neoalfacinha. Lá, vivia na Rua dos Remédios, ladeado por tascas e, nas noites tépidas, as janelas abertas permitiam adormecer embalado pelo fado; lá, aprendi a organizar o estendal, a ocultar as peças por trás das outras para não serem fotografadas pelos turistas, e o temor de uma cueca desbotada estampar o Face de um japonês levou-me a ser mais cuidadoso com o que vestia; lá, comprava fiado na mercearia de Habul, um simpático bengali e o seu peculiar sistema expresso de entrega, que consistia em arremessar os produtos pela janela do apartamento; lá, aprendi o pouco que sei do futebol português, através dos acalorados debates na Barbearia Oliveira, onde um barbeiro do Benfica e outro do Sporting pontuavam os argumentos esgrimindo as afiadas navalhas a poucos centímetros do pescoço dos clientes; lá, conheci a festa mais bonita de Lisboa, os Santos Populares, quando Alfama mais do que nunca se parece com Olinda, pulsante, viva, colorida, ébria em seu Carnaval junino.

Morar em Alfama é um privilégio que poucos portugueses, e não só isto, que poucos lisboetas têm o prazer de vivenciar, e é justamente assim que me sinto, um privilegiado. Deixei o bairro não por opção, mas porque toda gestação chega ao fim e era a hora de nascer para uma Lisboa maior. O cordão umbilical foi cortado de uma forma brusca: um incêndio destruiu o prédio onde vivíamos na Rua dos Remédios, num agourento 13 de agosto. Onde muitos enxergariam um sinal para se voltar ao Brasil, preferi um outro ponto de vista, de que o fogo levara tudo o que me ligava ao passado para que pudesse construir um futuro novo em folha.

Do bairro "manhoso" ao bairro dos "betos"

Curiosamente, fui parar em Alvalade, o que não deixa de ser uma ironia ter trocado o bairro "manhoso" pelo dos "betos". A escolha novamente obedeceu a critérios simples: durante anos, os brasileiros construíram a sólida reputação de péssimos inquilinos e o imóvel onde agora vivo foi o único dos que visitei cujo senhorio não exigiu o impossível, como um ano de renda adiantada ou que Jorge Jesus fosse o fiador. Se foi sorte, não sei, mas não posso reclamar.

Morar em Alvalade me fez perceber que Lisboa pode ser plana. Em Alfama, Mathias estudava no Menino Deus e tínhamos que empurrar o carrinho com um bebé de 15 quilos do Museu do Fado até o Castelo de São Jorge, subindo por pedras escorregadias e escadarias intermináveis, isto quando a roda não prendia por entre os carris do elétrico e vivíamos segundos de tensão com o 28 a se aproximar. OK, no final, a vista do Tejo do alto compensava o esforço, enquanto recuperávamos o fôlego. Mas agora trocamos a escalada com obstáculos por um curto percurso de bicla e, se tivermos sorte, no próximo ano letivo o miúdo vai para a Escola dos Coruchéus, a duzentos metros de casa.

Alvalade também me apresentou os benefícios da prática desportiva. Em Alfama, cheguei a nadar num centro desportivo em São Vicente, ao pé do Panteão, e se por um lado era curioso dar braçadas na companhia de Eusébio e Amália, por outro a piscina era demasiadamente curta e os horários limitados. A outra opção era um ginásio de boxe, o que, convenhamos, não era recomendável, pois após os 40 o que nos resta num ringue é ser sparring.

Nunca fui de ginásios - no Brasil são chamados de academia e isto diz muito sobre nosso conceito de "vida académica" -, mas mudei radicalmente de opinião sobre o assunto. O ginásio do bairro é um sonho, com ecrãs individuais nas passadeiras elétricas, conectados a televisão a cabo e à internet. Sem falar na piscina semiolímpica e a joia da coroa, a centrífuga que seca o fato de banho. Se você já teve que passar um dia inteiro no inverno com uma sunga molhada na mochila sabe o que quero dizer. Enfim, consegui perder peso, reduzir as taxas e manter a pressão arterial equilibrada. Obviamente, a pandemia pôs tudo a perder e não vejo a hora de o desconfinamento liberar o ginásio, a piscina e a centrífuga do balneário.

A perspetiva de uma Lisboa plana fez de mim um diletante ciclista. Com o auxílio de um motor elétrico, há poucos sítios onde não me arrisco em ir. Costumava ir de bicla ao trabalho e, noutro dia, aproveitei o novo normal para dar um giro pela zona do escritório, nos limites da Praça de Espanha, entre camiões e escavadeiras, um transtorno, mas feliz em perceber que a cidade expande as ciclovias. Pedalar me fez conhecer melhor Lisboa - o metro, apesar de prático, dá-nos a sensação de os sítios serem mais distantes entre si do que realmente são - e com disposição e tempo se caminha confortavelmente pela cidade.

Confortavelmente e com segurança. Desde que cheguei, não olho para trás, temeroso de um assalto. Andar em via pública numa capital brasileira é pedir para virar estatística. Embora disfarce, acho piada quando me advertem sobre lugares "perigosos" em Lisboa. Claro que há sempre o risco de se estar no sítio errado, na hora errada. O que é diferente do nosso cenário, onde os sítios e as horas nunca estão certos. Já estive sob a mira de revólveres, de diferentes calibres. Numa ocasião, na entrada o prédio, o assalto foi filmado pelas câmaras da portaria. E quem nunca se assistiu numa versão tosca de Die Hard não entenderá o porquê de todo brasileiro apontar a segurança como o principal motivo para cruzar o Atlântico.

Vivo próximo do prédio da câmara municipal. Gosto de passar e ver a faixa estendida, a reforçar que os imigrantes são bem-vindos. Em frente, o parque de Entrecampos, que ninguém sabe ao certo, nem o Medina, se se escreve junto ou separado, pois as placas se contradizem. Vai ver por isto se chama agora Jardim Mário Soares. Cá comigo, acho que é uma forma subliminar de dizer que a República passa por Mário Soares. Pode não passar de uma teoria conspiratória, claro, sou bom nisto, e ninguém me tira da cabeça que há algo por trás de as avenidas de Roma e Estados Unidos se cruzarem.

O facto é que me sinto cada vez menos estrangeiro em Lisboa. Às vezes, sonho que estou no Brasil e acordo com a sensação de ter tido um pesadelo, o que não deixa de ser constrangedor e cruel. No WhatsApp, meus amigos brasileiros não percebem o que escrevo. Já não acho mais estranho quando me perguntam pela rapariga e pelos putos, pela esposa e pelos filhos. Mathias nunca achará. Aos 5 anos, fala como um português e usa os pronomes melhores do que eu. Mais grave, grita "golo" e não sabe quem é Neymar.

Aos poucos, Lisboa vai deixando de ser a casa dos meus avós e transformando-se na minha casa.

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