Um banquete com carnes frias e as palavras de Hamlet
"Estamos em guerra neste momento, as pessoas não o querem assumir mas na Europa já estamos em guerra." Isto dizia a atriz e encenadora Teresa Sobral esta quinta-feira, sentada no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz, em Lisboa, após mais um ensaio de Trocava a Minha Fama por Uma Caneca de Cerveja. Dizia isto antes do atentado de Nice e antes do golpe da Turquia. Mas não eram necessários estes acontecimentos mais recentes para ter esta certeza: estamos em guerra. E o que podemos nós fazer? Continuamos a fazer likes nas imagens da guerra, como se isso fosse mudar alguma coisa? Continuamos com a cabeça enfiada no ecrã ou levantamos os olhos e enfrentamos o mundo?
Estas são algumas das questões colocadas por este espetáculo incluído na programação do Glorioso Verão - Festival Shakespeare. Toda a obra de William Shakespeare (1564-1616) é aqui convocada, mas sobretudo Hamlet, a tragédia do príncipe da Dinamarca, uma história de poder e de vingança, na versão original e na versão de Müller (Máquina Hamlet). "Comecei a pensar mais no Hamlet na altura em que se instalou a crise na Europa e as pessoas começaram a ir para a rua. A crise, o abuso de poder, a revolta das pessoas, está tudo aqui", explica Teresa Sobral.
Os vinte espectadores deixam os seus pertences à entrada do Jardim de Inverno e entram na grande tenda militar ali instalada. Em cada banco de madeira está uma braçadeira com o nome de algumas das personagens. Terão de colocar a braçadeira e responder à chamada. A viagem entre a literatura e a realidade é constante. Como seriam as personagens de Shakespeare se vivessem nos dias de hoje?
Ao mesmo tempo, os espectadores são também colocados na pele dos refugiados que chegam à Europa e que têm à sua disposição uma refeição em pratos de plástico. "Queríamos recriar o "banquete" aproximado do que são as refeições dos refugiados em tendas militares, e fazer esse contraponto entra a fome e a fartura, o poder e a miséria", diz Teresa Sobral. Talvez seja difícil comer enquanto na mesa principal um dos atores corta bocados de carne, ali postos numa bandeja de prata, como num verdadeiro banquete. Ou quando a atriz usa a faca da carne para também cortar pernas e braços dos muitos bonecos de plástico que ali estão. Mas essa é mesmo a ideia. "As pessoas sentem-se desconfortáveis a ver-me cortar uma perna a um boneco mas não pensam que neste momento há de haver algures uma criança que está a ser realmente maltratada."
"Hoje em dia cada vez as pessoas ouvem menos e veem menos, a atenção é menor. Só dão atenção a gifs e memes. Até é muito provável que haja um gif com a frase "ser ou não ser eis a questão", mas dessa forma as frases perdem o significado, as pessoas já não pensam no que está escrito. Ser ou não ser já não é a questão." Teresa Sobral pede-nos para pararmos para ver, ouvir e pensar.
Ouvir as palavras de Donald Trump, o candidato à presidência americana, que fala da necessidade de construir um muro que evite a entrada de intrusos no país. Ver as suas próprias imagens a comer. Ver as imagens de quem não tem o que comer. Ouvir o solilóquio de Shakespeare, na voz do ator inglês Kenneth Branagh. "Se hoje as pessoas realmente se apercebessem do que está a acontecer haveria uma revolução mundial", acredita Teresa Sobral. Levantem os olhos dos ecrãs e encarem o mundo. Ou então será demasiado tarde.
Trocava a minha fama por uma caneca de cerveja
Criação de Teresa Sobral, Rui Neto e Miguel Sobral Curado
Teatro São Luiz, Lisboa. A partir de amanhã e até sábado (dia 23), às 13.00.
12 euro (almoço incluído)