Um "aviso" e "dos mais fortes" de Marcelo a António Costa
Depois de ouvir o Presidente da República lembrar que é ele quem nomeia o primeiro-ministro e que ao líder do executivo não cabe desautorizar o chefe do Estado, António Costa veio pôr água na fervura, falando em "intriga", "confusão", um mal-entendido. Em resumo, "alguma coisa", mas não um desentendimento com Belém. "Não há seguramente nenhum conflito", garantiu o primeiro-ministro, depois das palavras duras de Marcelo Rebelo de Sousa que, na segunda-feira à noite, avisou: "Por definição, o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro. Quem nomeia o primeiro-ministro é o Presidente, não é o primeiro-ministro que nomeia o Presidente."
Foi a terceira ronda de um pingue-pongue de declarações que começa com Marcelo Rebelo de Sousa a afirmar, no último domingo, que o desconfinamento não terá novo recuo. "Já não voltamos para trás. Não é o problema de saber se pode ser, deve ser, ou não. Não vai haver. Comigo não vai haver. Naquilo que depender do Presidente da República não se volta atrás", afirmou então o chefe de Estado. Um dia depois, em Bruxelas, Costa veio dizer que ninguém pode garantir que não se volta atrás, defendendo que o executivo adotará "em cada momento as medidas que se justifiquem perante o estado da pandemia".
"Se alguém pode garantir [que não se volta atrás no desconfinamento]? Não, creio que nem o senhor Presidente da República seguramente o pode fazer, nem o fez." Para Costa, as palavras de Marcelo foram, não uma garantia, mas a manifestação de um desejo partilhado por todos os portugueses.
Poucas horas depois Marcelo era questionado sobre se as palavras de António Costa representavam uma desautorização e não esteve com meias-medidas, lembrando que é Belém que nomeia o chefe do executivo e não o contrário. São conhecidos alguns episódios de discordância pública entre o PR e o PM quanto à gestão da pandemia - sob o pano de fundo geral de uma ação bastante concertada - mas nunca Marcelo tinha puxado deste tipo de argumentos. Ontem, António Costa voltou ao assunto para concordar que "por natureza" os primeiros-ministros não desautorizam presidentes, que isso não aconteceu no caso, e que não há conflito com Belém: "Nem sempre primeiro-ministro e Presidente da República pensam o mesmo. Mas nunca houve qualquer ação desarticulada entre primeiro-ministro e Presidente da República, sobretudo no que diz respeito ao combate à pandemia. Portanto, não vale a pena andarem a criar romances." Marcelo já não deu resposta a estas palavras, para não "desconcentrar o fundamental" do dia de ontem - o jogo de estreia de Portugal no Euro 2020. Rui Rio, líder do PSD, escusou-se a comentar a polémica.
Um momento de tensão ou sinal de algo mais duradouro? António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, considera que "sob o ponto de vista discursivo, é claramente um aviso" de Marcelo a Costa e dos "mais fortes" que fez até agora.
"O Presidente da República percecionou a declaração de António Costa como pondo em dúvida as suas declarações. E não gostou", resume Costa Pinto, que não tem dúvidas de que as palavras do chefe de Estado se "referem, fundamentalmente, à declaração do estado de emergência". Uma competência da iniciativa de Belém que deu respaldo legal aos dois confinamentos do país durante a pandemia e que (o aviso de Marcelo é claro quanto a isso) não será renovado. Como vem afirmando já desde o final de maio, o Presidente da República defende que a matriz de risco que tem presidido ao desconfinamento deve ser alterada, dado o número de pessoas já vacinadas, em particular entre os grupos de risco, e a menor repercussão da doença sobre os serviços de saúde, quer nas hospitalizações em enfermaria quer nos cuidados intensivos.
António Costa Pinto acredita que esta troca de palavras "não anuncia que a partir de agora vamos ter uma tensão permanente" entre Belém e São Bento nem aponta para uma alteração do posicionamento de Marcelo. Mas sublinha também que, com as questões económicas a assumirem uma maior dimensão em relação ao problema sanitário, a prometida "vigilância do Presidente em relação às medidas de recuperação económica" será um palco fértil para "fricções".
susete.francisco@dn.pt