Por volta das 15.00 (19.00 em Portugal) do dia 6 de setembro de 2018, o candidato Jair Bolsonaro, do PSL, empolgado pela receção em Juiz de Fora, Minas Gerais, bastião tradicional do PT, resolve percorrer, em ombros, o centro da cidade, apesar dos conselhos em sentido contrário do seu staff de segurança. Ao som de "Mito, Mito, Mito", umas da suas alcunhas gritada pela multidão, cruzava a Rua Halfeld com a Rua Batista de Oliveira cerca das 15.30 (19.30), quando foi atingido no abdómen por uma faca de cerca de 30 centímetros espetada por um suposto apoiante saído do meio da confusão. Um ano depois, no mesmo local, comerciantes vendem espetadas e outros petiscos na "esquina do Bolsonaro", o mais recente ponto turístico da cidade. Não é para menos: ali ocorreu o mais infame mas provavelmente o mais decisivo de todos os momentos da última campanha presidencial.."Eu ganharia de qualquer jeito", costuma repetir o hoje presidente da República há pouco mais de oito meses Bolsonaro, que neste domingo será operado pela quarta vez em decorrência da facada por causa de uma hérnia, novamente pela equipa do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. .Antes do episódio, de facto, as sondagens já lhe davam a liderança, com 22%, uma vez afastada a ameaça de Lula da Silva, líder histórico do PT detido em Curitiba por corrupção na Lava-Jato, poder concorrer. Mas logo na pesquisa seguinte, o então capitão reformado e deputado de baixo clero subia dois pontos e não largaria a dianteira nem pararia de crescer até à segunda volta, ganha com 55% dos votos, a Fernando Haddad, o substituto de Lula, no fim de outubro..Não por acaso, a facada de Juiz de Fora é relembrada com frequência por Bolsonaro nas redes sociais, que ainda há um mês, sem motivo aparente, partilhou imagens relacionadas com o assunto. Dias depois do incidente, o então candidato veio a público descansar os seus apoiantes quanto ao seu estado de saúde reforçando ter sido vítima de um atentado de "um membro do PSOL", partido de extrema-esquerda..Adélio Bispo, o autor do golpe, pertenceu, realmente, ao partido de Marielle Franco ou Jean Wyllys de 2007 a 2014, o que levantou suspeitas de um crime político calculado. O aparecimento pronto de um advogado, Zanone Oliveira, disposto a defendê-lo, adensou essas suspeitas. Mas a polícia federal, já recebida no Palácio do Planalto pelo próprio Bolsonaro a esse propósito, não tem dúvidas de que Zanone trabalha de graça para Adélio, por publicidade, e que a facada foi da responsabilidade exclusiva do próprio autor. Teorias da conspiração em sentido contrário - fazendo crer que o atentado fora uma encenação para impulsionar o candidato de extrema-direita - também foram já descartadas..Dado como "inimputável", Adélio foi, entretanto, absolvido do crime. Mas continuará preso numa penitenciária de Campo Grande, capital do estado do Mato Grosso do Sul..De acordo com as avaliações dos psicólogos, o detido sofre de "transtorno mental delirante persistente". Para ele, há uma conspiração internacional, da maçonaria, da máfia italiana e do Fundo Monetário Internacional, e da qual Bolsonaro faria parte, para prejudicar o Brasil, razão pela qual, "a mando de Deus", ele teria de matá-lo. Não só Bolsonaro: a esses clínicos, ele já manifestou o desejo de matar também Michel Temer - "sei até onde mora, no Alto de Pinheiros", afirmou, referindo-se ao bairro de São Paulo onde o ex-presidente de facto vive..Em carta enviada à família em maio deste ano, a que o jornal Folha de S. Paulo teve acesso, o agressor do presidente dizia estar numa prisão "projetada pelo satanismo maçon". A família, que o trata sobretudo por Tuca e não tem meios para o visitar em Campo Grande, diz que na sua juventude em Montes Claros, também em Minas Gerais mas a cerca de nove horas de Juiz de Fora, sempre foi sossegado, dócil, prestável..No entanto, lembra o seu comportamento nómada - morou em dezenas de lugares longínquos e avisava das mudanças apenas horas antes de as consumar -, instável - ao longo de 20 anos teve 39 empregos. De empregado de mesa a operador de telemarketing, de vendedor de livros a balconista de farmácia, de operacional de máquinas numa fábrica de shampoo a pregador evangélico - e obsessivo -, ameaçava familiares de lhes cortar as mãos se os apanhasse a roubar e deitava no lixo, imediatamente, qualquer alimento que estivesse próximo da data de validade..Mas o que tirava Adélio do sério - talvez a única coisa - era a política. Familiares relatam que conhecia os nomes da maior parte dos políticos brasileiros e discutia com toda a gente sobre eles - às vezes até sozinho. .Solitário, não teve ligação sentimental conhecida além de uma agente da polícia de que chegou a ficar noivo. É órfão de mãe desde os 12 anos e filho de um alcoólatra..Não passaria de um cidadão anónimo, no entanto, não fosse aquela tarde de 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, cidade a que chegara dias antes para se hospedar a troco de cerca de cem euros numa pensão que, entretanto, já nem existe. Uma espécie de maldição abateu-se sobre o local: a dona faleceu e um hóspede morreu - nada que possa ser ligado ao crime de Adélio, entretanto, segundo a polícia..Naquela tarde, por outro lado, os colaboradores que estavam com Bolsonaro parecem ter acabado por ser alvos dessa suposta maldição. Gustavo Bebianno, fidelíssimo escudeiro do então candidato e presidente do PSL, seria o primeiro-ministro a ser demitido do governo, após embate público com Carlos Bolsonaro. O segundo filho de Jair, por sua vez, também esteve sempre ao lado do pai nos momentos seguintes à facada, mas acabou excluído do executivo e é hoje alvo da ira de parte dos ministros e dos ex-ministros, como Bebianno. .Outro colaborador que estava em Juiz de Fora naquela tarde, Marcelo António, presidente do PSL de Minas Gerais e ainda ministro do Turismo, está sob investigação num caso de corrupção envolvendo o partido e causador de enorme desgaste para o governo..O então senador Magno Malta, dado como candidato a vice-presidente de Bolsonaro, perdeu a eleição para o senado e acabou sem nenhum ministério - ele também passou em Juiz de Fora..Paulo Marinho, um dos financiadores da campanha, e Alexandre Frota, deputado então muito próximo do hoje presidente, foram dos primeiros a chegar à cidade onde Bolsonaro começou por ser atendido num hospital local mas hoje são dissidentes e declarados apoiantes de João Doria, governador de São Paulo, para o pleito de 2022..Só os comerciantes na "esquina do Bolsonaro" vão aproveitando o potencial turístico da esquina das ruas Halfeld e Batista de Oliveira. E o próprio presidente que, sempre que pode, recorda aquela tarde.