Um advogado, um cheque roubado e 340 mil euros nos casinos em quatro dias
Esta é a história estranha de um grupo de burlões, amigos, viciados no jogo, que roubaram um cheque da Brisa de 589 euros, o transformaram em 340 mil, ludibriaram um homem para lhe sacar a conta bancária, e gastaram quase todo o valor em meia dúzia de dias, em levantamentos e compra de fichas nos casinos de Lisboa, Estoril, Póvoa de Varzim e Espinho.
Tudo aconteceu num fim de semana prolongado da Páscoa em 2010. O processo acabou no tribunal, e foi julgado agora. Tinha sete pessoas acusadas, mas o Tribunal de Loures condenou apenas três delas a penas de prisão, uma delas suspensa. Um dos absolvidos é o advogado Arrobas da Silva, que era acusado de participar no esquema.
Neste processo, com acórdão lido a 29 de outubro passado e que envolve um único cheque, o advogado que ganhou notoriedade mediática como comentador televisivo de casos de justiça acabou absolvido por não ter havido prova da sua participação nos factos ilícitos, como acusava o MP, apesar do tribunal apontar fragilidades no seu álibi.
O caso remonta ao final de março de 2010. Começou com o desvio do cheque - que o processo não apurou como aconteceu. O que é certo é que, após terem o documento bancário, os arguidos procuraram alguém com conta no BCP. Contrataram um indivíduo brasileiro, que as autoridades não identificaram, que falou com um outro, num bar de Lisboa, numa noite de copos. O homem até começou por aceitar ceder a conta a troco de dinheiro. Terá recuado na intenção, segundo o processo. Mas era tarde demais - o brasileiro com quem ele tinha falado tirou-lhe BI, o cartão multibanco, o PIN e o cartão de contribuinte.
Era do que precisavam os arguidos Mohamed Halvan, português nascido em Moçambique, António Peres, e José Carlos Carneiro. Falsificaram o BI com a fotografia de José Carlos Carneiro, depositaram o cheque da Brisa, com o valor adulterado para 340 mil euros. Tudo isto aconteceu ao fim de manhã de uma quinta-feira, dia 1 de abril. À tarde já havia tolerância de ponto e entrava-se no fim de semana de Páscoa. O timing, notam os juízes, foi delineado pelos arguidos para terem tempo suficiente para usar o dinheiro até a fraude ser detetada. Isto "pressupõe um cuidadoso planeamento prévio".
Após o depósito, o grupo foi a uma caixa multibanco - com o cartão multibanco e a conta do homem do bar - consultaram o saldo, rejubilaram e logo começaram a sacar dinheiro. Primeiro com levantamentos de 200 euros em ATM's e depois, no Casino Lisboa, levantaram 30 mil euros em fichas. Na mesma tarde, seguiram para o Casino Estoril.
Tudo podia ter corrido melhor ao grupo de burlões, não fosse homem da conta bancária se ter ido queixar à polícia e ao próprio banco. Só foi alertado pelo cliente no dia 5, segunda-feira - embora através do sistema Paywatch, tenha provisoriamente suspenso o cartão.
Os burlões recorreram então a Carlos Bernardo, que na altura era gerente do BANIF, e os seus conhecimentos da banca foram decisivos. Conhecia o funcionamento do sistema, acedeu à conta e alterou o número de telefone de cliente: em vez do verdadeiro titular, colocou o telefone de um arguido, evitando assim o banco o contactasse e a burla fosse descoberta mais rapidamente. Este arguido está atualmente em fuga, tendo sido condenado a pena de prisão, à revelia, noutro processo.
O que aconteceu foi que o cartão permaneceu inibido algumas horas, mas os burlões conseguiram ativá-lo quando Bernardo contactou a Banca Direta do BCP, fazendo-se passar pelo legítimo titular e acabou por conseguir desbloqueando a situação. Com um novo código multicanal, os arguidos Mohamed e José Carneiro foram então ao Casino Estoril e levantaram mais 30 mil euros, através da compra de fichas.
Fizeram ainda mais uma aquisição no casino no valor de 1950 euros. Na madrugada, ainda no Estoril, mais 25 mil euros foram sacados. Depois mais dez mil. O objetivo era trocar mais tarde as fichas por dinheiro limpo, mesmo que algum se perdesse no jogo. Foi sempre este o procedimento.
Na tarde do dia seguinte, que era sábado de Páscoa, Mohamed e José Carneiro decidiram ir para o Casino da Póvoa de Varzim - e fizeram-no à boleia do advogado Fernando Arrobas da Silva. Por acaso, disse o advogado, no processo. Pararam no aeroporto Francisco de Sá Carneiro onde usaram o cartão de débito para comprar 28 mil dólares numa loja de câmbio. No casino, já na companhia de Júlio Lopes, outro arguido, José Carneiro levantou em três horas e 27 minutos um total de 75.700 euros, que depois distribuiu por outros arguidos.
Da Póvoa de Varzim seguiram para Espinho. Neste casino, o levantamento falhou, por falha eletrónica. Os suspeitos temeram que estivesse já cancelado de novo e seguiram para Lisboa. No domingo de Páscoa, quando já tinham verificado que o cartão estava ativo, Mohamed, José Carneiro, António Peres e Júlio Lopes voltaram para a Póvoa de Varzim, pararam antes na mesma loja de câmbio no aeroporto onde compram mais de 18 mil euros em moedas estrangeiras, e, já no casino, adquiriram mais 43 mil euros em fichas. Fizeram ainda mais levantamentos e compras em outros pontos do país.
No total, em quatro dias sacaram ao BCP, apurou o tribunal, 248 mil euros. A atividade só parou quando José Carneiro foi detido por usar identidade falsa no casino da Póvoa, onde o grupo já tinha levantado suspeitas.
Com estes factos provados, oito anos depois dos factos o tribunal condenou apenas três dos sete acusados. A pena mais alta foi aplicada a Mohamed Halvan, seis anos e meio de prisão, pelos crimes de burla qualificada, burla informática na forma agravada e branqueamento de capitais. António Peres foi condenado a 5 anos e 7 meses de cadeia, pelos mesmos crimes. Já José Carlos Teixeira, além dos crimes antes referidos, foi punido também por um crime de falsificação de documento, tendo 4 anos e 10 meses de prisão como pena que foi suspensa pelos juízes.
Todos têm antecedentes criminais, com os dois primeiros a cumprirem atualmente penas de prisão à conta de outros processos. José Carneiro emigrou para a Alemanha e tem uma vida nova - o que contribuiu para a suspensão da pena. Mahomed Halvan, António Peres e José Carneiro foram ainda condenados a pagar ao BCP a quantia de 340.987,50 euros, acrescidos de juros.
O advogado Arrobas da Silva contestava a acusação. Argumentou em tribunal que foi envolvido por ser o advogado, há anos, de Mohamed Halvan e que foi mera figura de circunstância por ter dado boleia. O MP tinha entendimento diferente e acusava-o de participar diretamente e de ter beneficiado, com conhecimento, do dinheiro. Ficou, no entanto, por provar que Arrobas da Silva participara nos movimentos fraudulentos de levantamentos, já que não aparecia nas imagens captadas pelas câmaras de videovigilância.
Os juízes não deixam de notar, no entanto, as hesitações e falhas de memória, supreendentes por ser Arrobas da Silva advogado e por ter representado José Carneiro num inquérito inicial, incorporado depois neste, quando Carneiro foi detido, no domingo de Páscoa, por usar identificação falsa. O tribunal nota que Arrobas da Silva, se não tinha nada a ver com os crimes, "seria elementar que lhe soassem todos os alarmes" pois tinha dado boleia de Lisboa ao mesmo indivíduo, e o natural seria rever todos os passos dados. Arrobas disse que esteve no casino no sábado e quando ia a sair voltou a encontrar Mohamed e Carneiro, tendo dado de novo boleia, agora para Lisboa. Explicação pouco credível para o tribunal.
"No entender do tribunal não faz grande sentido a descrição realizada pelo arguido que dera boleia a dois indivíduos para o Porto, dos quais apenas conhecia um, não os questionando os motivos que os levavam lá", notam os juízes, entre outras discrepâncias de testemunho feito em sede instrutória e depois em julgamento. Mas o advogado fez uma compra no casino da Póvoa com o seu próprio cartão, de cinco mil euros, e isto valeu-lhe como justificação para ter trocado depois 15 mil euros em fichas. Foram ganhos no jogo, garantiu.
As fragilidades da defesa do advogado Arrobas da Silva não levam a condenação já que, entendeu o coletivo, "no limite, a demonstração de falsidade de um álibi não dispensa a prova dos factos que integram um ilícito". E assim, na dúvida decide-se pelo reu, "in dubio pro reo" foi dada como não provada a sua participação.
Também Júlio Lopes, o filho de Mohamed Halvan e um cidadão romeno (condenado no processo principal), foram todos absolvidos por não ter ficado provada a sua participação ou conhecimento dos crimes.
Este processo tem, de resto, semelhanças e arguidos comuns com um de maior dimensão que teve decisão em primeira instância em 2013 e se encontra ainda em fase de recurso. No Tribunal de Monsanto foi julgado um grupo que desviava e falsificava cheques. Foi um mega-processo com 45 arguidos, em que 35 acabaram condenados.
Nesse caso, Arrobas da Silva foi condenado a três anos e meio por cada um dos dois crimes provados (burla qualificada na forma tentada e falsificação de documentos), mas em cúmulo jurídico o tribunal determinou a pena única de quatro anos e meio de prisão efetiva, tendo absolvido o advogado dos crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais, à semelhança de todos os restantes arguidos.