Trump e Putin: pior é sempre possível

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No Twitter, em janeiro de 2017, Trump afirmou que ter "uma boa relação com a Rússia é uma coisa boa, não uma coisa má. Só pessoas estúpidas, ou idiotas, é que pensariam ser má!". Em tese, o presidente americano tem razão. Dir-se-á que a Federação Russa é uma potência em declínio, mas, contrariamente ao que afirmou Barack Obama, ainda não se reduz a uma mera "potência regional". Porque o arsenal nuclear russo continua a ser o único capaz de provocar a destruição física dos Estados Unidos, a relação com Moscovo situa-se num patamar singular, obrigando qualquer que seja o presidente americano a gerir a relação com prudência. Apelar a uma "boa relação" é, portanto, incontroverso.

A relação russo-americana afigura-se crítica porque a ordem europeia que emergiu na sequência da implosão do império soviético tornou-se inaceitável para as elites moscovitas. As investidas militares na Geórgia e na Ucrânia, conjugadas com a anexação da Crimeia e as ameaças permanentes à soberania dos países bálticos, evidenciam que o Kremlin é, hoje, uma potência revisionista disposta a recorrer à força militar para reconstruir a influência outrora exercida no "estrangeiro próximo". Dito de forma diferente, para o Kremlin, a inserção russa na ordem europeia deixou de ser um objetivo político prioritário.

Esta mudança, por sua vez, alterou a leitura de Moscovo sobre os alargamentos da NATO e da União Europeia. Se, para Boris Ieltsin, a dupla expansão destas instituições para leste era entendida como uma fonte de segurança, na medida em que poderia amarrar a Rússia ao Ocidente, na visão euro-asiática de Putin os alargamentos são fontes de insegurança, instrumentos que serviram para firmar o "cerco estratégico" ao país.

Atendendo às mudanças estratégicas ocorridas na Rússia desde que Putin assumiu o poder - e à adoção de uma política externa neoimperial - não surpreende que nenhum presidente americano tenha conseguido estabelecer um bom relacionamento com o Kremlin. Obama foi apenas o último a confrontar-se com o insucesso. Determinado a fazer um "recomeço" nas relações russo-americanas, o antecessor de Trump terminou o mandato a encarar a Rússia como uma das maiores ameaças ao interesse nacional dos Estados Unidos.

Com efeito, à semelhança da União Soviética, a estratégia da Rússia visa enfraquecer e, no limite, provocar a desintegração da União Europeia e da Aliança Atlântica. Torna-se, por isso, evidente que a preservação da coesão europeia continuará a ser do interesse de Washington. Neste quadro, Trump, ao caracterizar a aliança como "obsoleta", gerou enorme desconfiança quanto ao papel dos Estados Unidos na região e, sobretudo, levantou dúvidas quanto à garantia de segurança proporcionada pelo Artigo 5 do Tratado do Atlântico Norte. Para tranquilizar os aliados, os responsáveis pelos departamentos de Defesa e de Estado vieram a público reafirmar os compromissos inerentes ao Artigo 5.

A fim de dissipar dúvidas quanto ao futuro da Aliança Atlântica, tornou-se imperativo colocar tropas americanas e de outros países da NATO no flanco leste. Para dissuadir Moscovo, o Pentágono colocou mil tropas de combate como tripwire nos países bálticos, para sinalizar que uma eventual investida bélica acionará uma resposta militar robusta por parte dos Estados Unidos. Em resposta, Moscovo colocou, em Kaliningrado, sistemas de defesa área modernos e mísseis nucleares de curto alcance, demonstrando a sua disponibilidade para recorrer a armas nucleares no teatro europeu em caso de confronto armado com a Aliança Atlântica.

Neste quadro, não é difícil descortinar a natureza das concessões a serem exigidas por Vladimir Putin em troca de uma "boa relação" bilateral com os americanos. Uma vez que o Kremlin insiste que os alargamentos da NATO e da União Europeia, tal como o "golpe fascista" que afastou Viktor Yanukovich do poder em Kiev, representam um "cerco estratégico" à Rússia, as garantias de segurança reivindicadas pelo Kremlin dificilmente encontrarão aceitação.

Uma vez que estão excluídas concessões quanto à NATO, poderia existir a tentação de compensar Putin na Ucrânia, assim abandonando as sanções e o processo Minsk. Contudo, se Trump fizer concessões unilaterais desta natureza, apenas encorajará o presidente russo a manter o padrão de comportamento até agora exibido.

Se as concessões unilaterais incentivam a assertividade russa e se o confronto militar russo-americano seria suicidário, quais as áreas onde poderá existir margem negocial entre Moscovo e Washington? Os interesses nacionais destas potências convergem em torno de duas questões concretas: o combate ao terrorismo e o controlo do armamento nuclear. Se, depois da experiência na Síria, a luta contra o terrorismo não promete ser campo fértil para uma aproximação russo-americana, já o controlo de armamento nuclear pode permitir alguns entendimentos. Até porque, desde que Putin chegou à presidência, o regime de controlo de armamento na Europa - e não apenas o armamento nuclear - tem vindo a ser severamente enfraquecido.

Porque os interesses vitais dos dois Estados assim o exigem, será, certamente, possível gerir as tensões inerentes à relação. Todavia, firmar uma "boa relação" parece ser mais complexo. Putin, mesmo que assim o entendesse, não dispõe de margem para quebrar as amarras impostas pelo ressentimento antiamericano e as fantasias euro-asiáticas do establishment russo. A sua política externa, ancorada numa ideologia crescentemente nacionalista e neoimperial, deixa uma janela estreita para novos compromissos.

Trump, pressionado por alegações de envolvimento russo na campanha presidencial, também se encontra constrangido. Dir-se-á que a saída do impasse ocorrerá quando um dos dois líderes sair de cena. Até lá, por muito insatisfatório que possa parecer, resta preservar o statu quo e evitar que um mau relacionamento se transforme em algo pior. E, em política externa, há sempre pior.

Presidente da FLAD

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