Truffaut

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Digamos que nos descobríamos confrontados com os enigmas do amor. E que tínhamos de resolver a clássica "questão do extraterrestre". A saber como explicar a um extraterrestre o que é o amor? A solução mais didáctica seria apaixonarmo-nos pelo nosso interlocutor de outra galáxia. Mas é um manobra pouco aconselhável: os riscos de sermos mal entendidos não seriam poucos (e sabemos que mesmo com seres do nosso planeta as coisas nunca são simples...). Teríamos, no entanto, um trunfo fortíssimo para jogar. Qual? Mostrar-lhe um filme de François Truffaut.

A hipótese é tanto mais consistente quanto uma das experiências de Truffaut como actor foi a personagem de Claude Lacombe, o cientista que, em Encontros Imediatos do Terceiro Grau (1977), de Steven Spielberg, dialogava com os extraterrestres, decifrando a sua linguagem e, literalmente, a sua música. Mas na filmografia de Truffaut como realizador, as possibilidades não faltariam. Exemplos? Desde logo, A Sereia do Mississipi (1969), com a cena à lareira em que Jean-Paul Belmondo diz a Catherine Deneuve que o seu rosto é como uma paisagem e que se sente compelido a fechar os olhos para sustentar a beleza dela. Ou As Duas Inglesas e o Continente (1971), um dos raros filmes da história do cinema em que um cineasta do pudor ousou filmar o sangue de um primeiro acto de amor. Ou ainda O Homem que Gostava de Mulheres (1977), título que parece remeter para uma comédia, mas que, em boa verdade, esconde a sublime tragédia do desejo.

Será este Truffaut plural, transparente e misterioso, terno e violento, que teremos a partir de hoje na Cinemateca. A sua retrospectiva integral é necessariamente mais do que a celebração "obrigatória" de um dos pais da Nova Vaga francesa, esse movimento que, nos anos 50/60, primeiro a partir da actividade crítica, depois prolongando-se nos filmes, mudou (e, em muitos aspectos, inventou) as coordenadas do cinema moderno. Isto porque encerrar Truffaut no panteão dos "mestres" mais ou menos intocáveis será sempre limitar a mais genuina dimensão humana dos seus filmes. Como o seu mestre Jean Renoir, François Truffaut (1932-1984) foi um obsessivo apaixonado pela diversidade do género humano, nunca contornando as suas facetas mais negras, mas olhando-o sempre com uma militante disponibilidade moral e, sobretudo, uma infinita ternura.

Truffaut é mesmo autor de dois ou três filmes que, para mais do que uma geração de espectadores, se impuseram como matrizes de determinados universos. Assim, por exemplo, a sua primeira longa-metragem, Os 400 Golpes (1959), permanece como um objecto de culto no interior dos grandes retratos da infância. Mais do que isso do confronto iniciático da infância com as convulsões do mundo dos adultos. A personagem central de Os 400 Golpes, Antoine Doinel, interpretado pelo emblemático Jean-Pierre Léaud, transformar-se-ia mesmo num símbolo nuclear da obra de Truffaut, uma verdadeira projecção (auto)biográfica que Truffaut/ Léaud reencontrariam em mais três títulos Beijos Roubados (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979).

Em todo o caso, importa superar a leitura "lírica" que, por vezes, os filmes de Doinel desencadeiam, como se Truffaut fosse um mero ilustrador de um romantismo mais ou menos ligeiro. Que o romantismo nunca é ligeiro, prova-o o conjunto da sua obra. Mais do que isso, é preciso celebrar Truffaut como alguém que, até ao fim, praticou um gosto sitemático do desvio e da experimentação dramática. Ele é mesmo autor de um dos mais belos filmes de ficção científica da década de 60 Fahrenheit 451 (1966), adaptação do romance de Ray Bradbury, rodada em Inglaterra, com Julie Christie e Oskar Werner.

Que une, então, os títulos mais frequentemente citados, como Jules e Jim (1962) e A História de Adèle H. (1975), a obras mais obscuras ou menos divulgadas como Angústia (1964), coproduzido por António da Cunha Telles e em parte rodado em Portugal, O Menino Selvagem (1970) ou O Quarto Verde (1978)? Talvez um duplo sentimento que liga os labirintos do desejo a uma memória sempre omnipresente (mesmo quando factualmente vaga) dos tempos da infância.

Por alguma razão, Truffaut decidiu assumir, ele próprio, o papel do professor Jean Itard que, em O Menino Selvagem, recebe e tenta educar a personagem de uma criança abandonada na selva. Do mesmo modo, não terá certamente nada de casual o facto de ele ser uma vez mais o protagonista de O Quarto Verde, centrado num homem dedicado, literalmente, ao culto da sua mulher morta. Para Truffaut, o amor foi sempre esse fantasma vivo nele pressentimos um silêncio irreversível e também a verdade irredutível de cada corpo. Nostalgia de Truffaut? Nenhuma. Ele continua a ser um cineasta exemplarmente moderno.

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