Tribunal Europeu não pode aceitar queixa de Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas
"O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas."
O artigo 35º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que estabelece as regras de acesso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), parece claro: só é possível recorrer àquela instância europeia após todas as instâncias nacionais serem esgotadas, ou seja, quando os tribunais portugueses se tiverem pronunciado e não permitirem mais possibilidade de recurso. Tal torna o anúncio, feito esta quinta-feira pelo Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas, de que vai apresentar queixa naquele tribunal, aparentemente extemporâneo.
É que, como certifica ao DN um jurista conhecedor do funcionamento do TEDH que prefere não ser identificado, "a regra é esgotar os meios internos antes de recorrer ao tribunal. Há exceções, mas só quando se considerar que os meios internos são ineficazes. O que é muito raro e dificilmente poderia ocorrer neste caso, a não ser que existisse algum circunstancialismo factual na queixa que não é fácil descortinar."
O DN procurou obter esclarecimento junto daquele que é simultaneamente dirigente do sindicato e seu advogado, Pedro Pardal Henriques. Mas este causídico, que de acordo com o site da Ordem dos Advogados só tem cédula profissional desde 2017, não respondeu às chamadas nem à mensagem que o jornal lhe enviou, e na qual era perguntado qual o fundamento da queixa - que artigos da Convenção irá indicar como tendo sido violados - e ao abrigo de que disposição ou circunstancialismo se propõe apresentar queixa direta, sem antes esgotar os recursos judiciais no país.
O TEDH já apreciou vários casos relativos a greve, aplicando o artigo 11º da convenção, "Liberdade de reunião e de associação", que estatui: "Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses."
No mesmo artigo, o número 2 aceita restrições ao direito estatuído no número, estabelecendo regras para essas mesmas restrições: "O exercício deste direito só pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado."
Os vários estados europeus têm legislações muito díspares relativas ao direito à greve, existindo países em que é proibido aos funcionários públicos -- todos -- fazer greve. É o caso da Alemanha, da Bulgária, da Áustria, Dinamarca, Estónia e Turquia. Tal é aceite pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), considerando que o direito à liberdade de associação dos funcionários públicos não implica o direito à greve.
Em alguns países -- é novamente o caso da Alemanha mas também do Reino Unido --, as greves "políticas", ou seja, as chamadas greves "de protesto", que não estejam vinculadas exclusivamente a reivindicações laborais concretas, não estão protegidas pela legislação. Em 2016, o Reino Unido aprovou legislação obrigando a que para convocar uma greve num serviço público considerado "importante" seja necessária uma votação (secreta) em que pelo menos 50% dos membros de um sindicato estejam presentes e haja 40% de votos favoráveis. Também na Polónia e Eslováquia é obrigatória uma votação secreta para convocar uma greve.
O TEDH já reconheceu, por exemplo numa decisão de 2009 (Enerji Yapi-Yol Sen versus Turquia), que o direito à greve não é absoluto e pode ser restringido ou condicionado. E que o princípio da liberdade de associação, reconhecido no artigo 11º da convenção, pode ser compatível por exemplo com a proibição da greve de funcionários públicos que desempenhem "funções de autoridade em nome do Estado".
Por sua vez, o Comité da Liberdade de Associação da OIT, criado em 1951 para supervisionar a aplicação das convenções assinadas sob os auspícios daquela organização, considera que os governos só podem decretar serviços mínimos quando as greves digam respeito a serviços cuja interrupção possa pôr em perigo a vida, segurança pessoal ou saúde de toda ou parte da população (dizendo respeito pois a serviços essenciais no sentido estrito do termo), ou quando estejam em causa serviços não essenciais no sentido estrito do termo mas em relação aos quais a dimensão e duração de uma greve possa resultar numa crise nacional, pondo em perigo as condições normais de vida da população.
A OIT considera o setor hospitalar, os serviços de energia, água, telefone e controlo aéreo como essenciais, mas adverte que a definição de serviço essencial depende muito das condições específicas de cada país. O conceito não pode ser absoluto porque um serviço não essencial pode tornar-se essencial se uma greve tiver uma determinada duração ou dimensão, pondo em causa a vida, segurança ou saúde da população ou parte dela. Pelo que há casos específicos de serviços considerados não essenciais em que a OIT crê que as circunstâncias podem implicar a obrigação de serviços mínimos: transporte marítimo, autoridade portuária, metro, transporte de passageiros e de bens, caminhos-de-ferro e correios.
Resulta igualmente das decisões do Comité da Liberdade de Associação da OIT, no qual têm assento representantes governamentais, dos trabalhadores e dos patrões, que "os serviços mínimos podem ser uma alternativa em situações nas quais uma restrição substancial ou uma proibição total da greve não se justifica mas, sem pôr em causa o direito da maioria dos trabalhadores à greve, é conveniente assegurar que as necessidades básicas do público são satisfeitas." Mas, nestes casos, o comité considera que o ideal é que a fixação dos serviços mínimos ocorra antes do conflito e com a participação dos sindicatos.
Na ausência de um acordo quanto aos serviços mínimos, o comité considera que devem ser decididos por uma instância independente e não pelo governo. Uma decisão definitiva sobre a adequação e indispensabilidade dos serviços mínimos decretados só poderá, segundo o comité, ser pronunciada pelas autoridades judiciais.
Nota: artigo atualizado às 23.30 de dia 08 de agosto, com informação sobre a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, jurisprudência do TEDH sobre direito à greve e decisões do Comité da Liberdade de Associação da OIT.