Nove anos de prisão para os três inspetores do SEF: "Overbeating feroz e cobarde"

Em acórdão desta terça-feira, o Tribunal da Relação alterou a qualificação jurídica dos crimes cometidos pelos três inspetores do SEF, considerando que com o espancamento "feroz" se conformaram com causar "doença grave" mas não "perigo para a vida". Manteve condenação a 9 anos de dois deles e agravou a do terceiro.
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Os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Duarte Laja e Luís Silva tinham sido condenados, em maio, pelo Tribunal Criminal de Lisboa, a nove anos de prisão e o seu colega Bruno Sousa a sete. Para o Tribunal da Relação, que decidiu esta terça-feira sobre os recursos apresentados pelos arguidos, pelo Ministério Público e pela viúva de Ihor Homeniuk - o cidadão ucraniano que a 12 de março de 2020 morreu sob custódia do SEF - esta diferença de penas não faz sentido. Assim, manteve a pena dos dois primeiros e agravou a do terceiro, considerando que não há diferença de responsabilidade.

"Não se antolha essa diferença de culpa, nem que a condição pessoal do arguido Bruno Miguel Valadares e Sousa se mostre mais especificamente atenuativa do que a dos restantes", lê-se no acórdão de quase 300 páginas, a que o DN teve acesso. "Não estamos perante alguém que, acompanhando colegas mais velhos e de maior experiência, sentisse intimidação ou temor reverencial, que o condicionasse a fazer o que os outros lhe mandavam. Tinha este arguido, de facto, a formação e a experiência profissional que lhe permitiam, caso a iniciativa da agressão tivesse cabido aos outros dois arguidos (o que não se mostra sequer provado), fazer frente a tal iniciativa e opor-se à mesma, assim o tivesse querido. Bastaria que tivesse saído da sala dos médicos, como primeiro passo. Assim, e nesta parte, não vislumbramos, ao inverso do tribunal "a quo", qualquer menor grau de culpa, por parte deste arguido."

Mas o Tribunal da Relação, que faz várias alterações no rol dos factos dados como provados e não provados pela primeira instância, também alterou a qualificação jurídica do crime pelo qual os três inspetores haviam sido condenados na primeira instância - como aliás tinha antecipado, na audiência ocorrida a 10 de novembro, pela juíza relatora. Assim, manteve a qualificação do crime de ofensa à integridade física grave, descrito no artigo 144º do Código Penal, mas baseando-o na alínea c - "quem ofender o corpo ou a saúde de uma pessoa de forma a provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente" - em vez daquela que foi adotada na primeira instância, a alínea d: "provocar-lhe perigo para a vida."

A agravação pelo resultado morte mantém-se, mas por negligência: "Não podemos deixar de concluir pelo preenchimento, a título negligente, da imputação do resultado morte às condutas dos arguidos."

Afastando, como já o tinha feito o tribunal inferior, a condenação por homicídio qualificado (que o recurso da viúva de Ihor pedia) - "É quanto a nós manifesto que os arguidos não atuaram com o propósito de tirarem a vida a Ihor Homeniuk. (...) Quando se tem intenção de matar alguém, não se deixa essa pessoa espancada, magoada, dorida, presa de pés e mãos, à guarda de terceiros, que não só não têm qualquer intenção de a matar mas que até poderão tentar evitá-lo. Se a intenção fosse essa, os arguidos ou teriam apressado esse desfecho ou teriam aguardado que este se processasse. O que não teriam seguramente feito era sair do local, ao mesmo não mais regressando" - as juízas relatoras consideram que os inspetores não previram o resultado morte nem se conformaram com ele.

Mas quiseram, no entender das magistradas, "ofender o corpo e a saúde de Ihor Homeniuk, o que conseguiram alcançar, de um modo extremamente violento e que lhe causou, para além de forte sofrimento, uma série de lesões graves na sua saúde e no seu corpo."

Com essas lesões, estabelece o acórdão, conformaram-se: "No que concerne ao facto de terem previsto que, por virtude do espancamento a que o sujeitaram, o modo como atuaram e os locais que atingiram, daí pudessem resultar fraturas sérias das costelas, dores e dificuldades respiratórias, bem como uma situação de verdadeira tortura física, decorrente da posição de algemagem e da sua manutenção por largo período temporal, é manifesto que tinham de ter previsto que tal poderia ocorrer e é também manifesto que com tal se conformaram."

Seria aliás, sublinha o acórdão, objetivo de tal ação deixar o detito prostrado e sem reação: "Na verdade, cremos que o que os arguidos efectivamente quiseram fazer foi resolver, de uma vez, os "problemas comportamentais" de Ihor Homeniuk, assegurando-se que aquele ficava numa condição física tal que o impedisse de poder continuar a gerar distúrbios e a dar origem a queixas por parte dos vigilantes, com a consequente chamada de elementos do SEF para as resolverem. E a sua atuação consubstanciou-se nisso mesmo - espancarem-no, magoarem-no seriamente e manietarem-no, de modo a que este, fisicamente, ficasse apático, quieto, cheio de dores, a que não será eventualmente alheia a ideia de dar "uma lição", "explicando", através do tormento físico, quem ali mandava e que o seu comportamento não era por aqueles permitido. Se tal não fosse o caso sendo, como são, agentes de um órgão de polícia, com treino específico (que inclui técnicas de imobilização e de luta corporal), teriam evitado atingir, com a força e persistência com que o fizeram, a região do tórax de Ihor Homeniuk sabendo, como aliás até é do conhecimento comum, que a zona das costelas tem alguma fragilidade, sendo até possível fracturar uma delas por virtude de uma mera queda."

A conclusão é pois de que "os arguidos atuaram com dolo eventual, não quanto à criação de perigo para a vida, mas no que concerne à previsão e conformação dos agentes geradora de um sofrimento particularmente doloroso para a vítima; isto é, estamos perante uma ofensa no corpo e na saúde (doença) que excede, em larga escala, a previsão do crime na sua forma simples."

A descrição das fraturas causadas como "doença" - qualificação que os arguidos contestaram em reação ao aviso feito pelas juízas na audiência referida - é assim explicada: "Caso a vítima não tivesse falecido, não restam quaisquer dúvidas, face às mais básicas regras de experiência de vida que, durante as semanas necessárias à consolidação dessas fraturas, em cada momento em que a vítima tivesse de respirar para se manter viva, a dor que sentiria proveniente da doença que os arguidos lhe infligiram seria excruciante e prolongada no tempo. A que aditaria a dor que sentiria de cada vez que tivesse de usar qualquer um dos seus membros superiores, para qualquer tarefa básica como lavar-se, vestir-se ou alimentar-se. (...) Basta pensar o que dói uma única costela partida. Agora, multiplique-se por catorze... Não nos oferece qualquer dúvida que, atento o número e a localização de todas essas fraturas, que estamos perante uma doença (a quebra desses arcos costais) particularmente dolorosa, doença essa de sofrimento atroz que foi representada e aceite pelos arguidos."

Um circunstancialismo que as magistradas reputam como "revelador de especial ferocidade" e "cobarde": "Não contentes com o facto de serem três homens com formação policial a enfrentar um único homem, já incapaz de fugir, por ter as pernas atadas, decidiram ainda, num ato gratuito e desnecessário para o propósito que tinham em vista, algemá-lo com as mãos atrás das costas. Estamos perante um verdadeiro overbeating actuativo, exagerado, desnecessário, abusivo."

A possibilidade de não terem sido os três arguidos os responsáveis pelas lesões verificadas no cadáver de Ihor - nomeadamente a fratura das costelas considerada causa concomitante da asfixia mecânica que o matou -, e que estes, através dos seus advogados, quiseram demonstrar, levantando a suspeita de que quer os seguranças quer outros inspetores que contactaram com Ihor poderiam ser responsáveis por elas, é afastada pela desembargadoras.

"Caso a tareia (perdoe-se o coloquialismo) tivesse sido produzida antes da chegada dos três arguidos, a verdade é que estes, assim que tentassem algemar um homem com várias costelas fraturadas, ter-se-iam de imediato apercebido de tal e, consequentemente, teriam dado notícia do facto", argumenta o acórdão. "Note-se que estamos a falar de 8 fraturas nas costelas direitas e 6 fraturas nas costelas esquerdas, como consta no relatório de autópsia. A dor que a mobilização de braços provocaria no agente que padecia de tais lesões, seria verdadeiramente atroz, como resulta das mais básicas regras de experiência comum. Ora, a verdade é que os três arguidos, nas suas declarações, não referiram qualquer dificuldade (para além da resistência física a esse processo, por parte de Ihor Homeniuk) em procederem à algemagem das mãos atrás das costas, nem tiveram qualquer tipo de reação (como decorreria das regras de experiência comum), de chamada de atenção para essa circunstância e acionamento de auxílio médico a esse respeito. Assim, a própria conduta dos arguidos, na altura em que algemam Ihor Homeniuk, é demonstrativa da inexistência, naquele momento temporal (8H30 do dia 12 de Março de 2020) de tal tipo de lesões (fraturas de arcos costais), na vítima. Se assim não fosse, teriam dado o alerta, uma vez que não quereriam ser responsabilizados por algo que não tinham feito, sendo certo que a sua postura em julgamento foi sempre no sentido de terem procedido para com Ihor Homeniuk, de acordo com as regras legais."

De resto, as desembargadoras retiram do rol de factos não provados, colocando-a no rol dos provados, como pedia a viúva de Ihor, a utilização do bastão pelo inspetor Luís Silva, considerando que a marca compatível com essa arma que o médico que fez a autópsia identificou no cadáver só pode ter essa explicação: "Temos pois de concluir que, face ao conjunto da prova e atendendo às regras de experiência comum, o único objeto contundente e com forma cilíndrica, com rigidez necessária para causar a referida lesão, que entrou na sala dos médicos do mundo [sala na qual Ihor esteve detido e morreu] e que foi confessado pelos Recorridos, foi o bastão extensível que seguia na mão do Arguido Luís Silva, como refere a assistente. E se assim é, como é, subscreve-se o que afirma a recorrente a este respeito: então necessariamente ter-se-ia que concluir com meridiana certeza pela sua utilização por parte dos Arguidos."

Também no que se refere à obrigação de desalgemagem do detido, que foi uma das questões mais debatidas no julgamento dos inspetores (Ihor esteve mais de oito horas algemado, o que segundo a autópsia determinou, em conjunto com as fraturas das costelas, a sua morte), o acórdão não tem dúvidas de que era a eles que competia: "Não restam dúvidas que, a partir do momento em que três membros de um órgão de polícia criminal apuseram algemas num cidadão, era a estes três membros que cabia retirá-las. A responsabilidade e a decisão a esse respeito cabia-lhes a si, como estes não podiam ignorar, dadas as regras que vigoram na profissão que exercem."

Apesar de não acolherem o pedido do Ministério Público, que queria ver Duarte Laja e Luís Silva condenados a 11 anos de prisão (para Bruno Sousa o MP não pedia agravamento da pena) invocando nomeadamente a necessidade de prevenção geral da violência policial, as magistradas sublinham essa mesma necessidade e a especial censurabilidade da conduta de agentes da autoridade que usam a violência não justificada, ou seja ilegal: "A conduta dos arguidos teve ainda graves repercussões, pois a expectativa dos cidadãos no modo de actuação dos seus agentes de autoridade não é o de que resolvam questões comportamentais mediante agressões físicas a quem quer que seja, mas antes que se rejam pelas normas legais que, em primeira linha, juraram cumprir e fazer cumprir. Assim, as exigências de prevenção geral, cujo propósito já acima expusemos mostram-se, neste contexto, elevadas."

O acórdão também frisa a desumanidade e a ausência de cumprimento da lei por parte de outros membros do SEF, nomeadamente da hierarquia, e dos funcionários da empresa de segurança Prestibel que contactaram com Ihor, indiciando cumplicidade e omissão de auxílio.

"Embora se não possa imputar a nenhum dos vigilantes presentes no EECIT, nem às chefias do SEF presentes no aeroporto de Lisboa, o total conhecimento da dimensão do espancamento sofrido por Ihor Homeniuk às mãos dos arguidos (apenas estes três, sabiam, em concreto, a gravidade do mesmo, as zonas atingidas e a força empregue na agressão), a verdade é que muitas pessoas tiveram conhecimento de que ele teria sido agredido e, mais relevantemente, tiveram oportunidade de verificar, durante as horas que se seguiram a tal ato, que o mesmo se mostrava apático, prostrado, algemado com as mãos atrás das costas e impossibilitado de usar os pés, por os ter amarrados", lê-se no acórdão, que não disfarça a indignação: "E nada fizeram, nem sequer tiveram a preocupação de o ajudar a ir à casa de banho ou de o hidratar, dando-lhe água, durante longas horas, nem pediram ou que viesse algum inspetor do SEF verificar se as algemas já podiam ser retiradas ou que comparecesse um enfermeiro ou socorrista da Cruz Vermelha (sempre presentes no aeroporto), para avaliarem o estado de saúde da vítima. E, de igual modo, nenhum dos elementos do SEF, que teve conhecimento do facto de Ihor Homeniuk ter ficado algemado, cuidou de averiguar o seu estado, dirigir-se ao local para verificar o que se passava ou mandar algum inspetor ao EECIT [Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária, o centro de detenção para estrangeiros não admitidos em território nacional do aeroporto de Lisboa, onde Ihor morreu] para esse fim. (...) A verdade é que esta falta de auxílio a alguém que estava manifestamente em sofrimento, a vista grossa que quase uma dezena de pessoas fizeram ao que se estava a passar, a falta de coragem de assumirem qualquer tipo de iniciativa, a ausência de empatia e o egoísmo que revelaram, caso não se tivesse verificado, poderia ter ajudado a que, antes das 17 horas desse dia, alguém pudesse ter aliviado Ihor Homeniuk do seu padecimento."

Recorde-se que, como o DN noticiou em julho, o MP pediu extração de certidão do processo para que o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, assim como dois inspetores chefes - João Diogo e João Agostinho - e os quatro seguranças Manuel Correia, Paulo Marcelo, Jorge Pimenta e Rui Rebelo fossem acusados do crime de omissão de auxílio. Em relação a dois dos funcionários da Prestibel, Manuel Correia e Paulo Marcelo, que admitiram, quer na fase de inquérito quer ao depor em tribunal, terem, na noite de 11 para 12 de março, manietado Ihor com fita adesiva, o MP anunciou também a intenção de acusar por ofensas à integridade física graves qualificadas. Não é até agora conhecida a conclusão deste inquérito.

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