Três livros para abril em tom japonês e português
Em abril livros mil, podia ser o mote para a edição nacional, pois as novidades começam a "pingar" pelas livrarias com força. Não faltam títulos bons, como é o caso de mais um de Haruki Murakami. Não é um romance, antes uma conversa entre o escritor japonês e o maestro, com a mesma nacionalidade (nasceu na China), Seiji Ozawa, que está praticamente focada na temática da música clássica, sem esquecer a vida dos intervenientes. A musicalidade que atravessa esta espécie de entrevista, dupla, basta para se a ler, mesmo que muitos leitores possam estar à espera de outro "produto" quando veem o nome do escritor. Nada que a narrativa de responsabilidade de Murakami não transforme um terreno árido para a maioria das pessoas num quase romance, se se a olhar como dois personagens de um dos trabalhos habituais do escritor.
Não é difícil ir avançando pelas quase quatrocentas páginas em que ambos escutam vários concertos e os comentam. No site de Murakami descreve-se este momento literário como uma "conversa profundamente pessoal e íntima" entre ele e o ex-maestro da Orquestra Sinfónica de Boston. O tema é, como o título explicita Música, Só Música [Absolutly On Music], nada que impeça o leitor de avançar em áreas de expressão humana que lhe são menos conhecidas, até porque a conversa entra com pés de lã num léxico menos fácil e a dado momento os termos específicos já não se estranham assim tanto. Murakami já o tinha feito numa área menos culta, aquela em que se exercita, a da maratona, num relato por traduzir em língua portuguesa, What I Talk About When I Talk About Running. Também a nível musical, quando se envolve noutro género musical, o do jazz, tema "trivial" na sua escrita e que já mereceu textos específicos.
Na introdução, Murakami contextualiza este livro: "Quando nos encontrávamos, conversávamos sobre tudo menos música, e se por acaso o fazíamos, trocávamos apenas comentários dispersos que não nos levavam longe." No entanto, quando o maestro adoeceu, surgiu o tempo livre para estas conversas durante a convalescença e Murakami aproveitou a oportunidade. O escritor confessa-se um amador nesta área, uma posição envergonhada perante alguém como Ozawa, que vai sendo desmentida no decorrer destas conversas, onde várias vezes demonstra um profundo conhecimento sobre a música clássica, como se pode comprovar ainda mal se iniciou o primeiro capítulo.
Talvez a habilidade - e a grande prática - para a escrita torne Murakami o grande condutor destas páginas e, felizmente para o leitor, a reprodução destas conversas salte para um nível literário que faz lembrar em muito os cenários de alguns dos seus livros. Mesmo que os personagens sejam Brahms, Beethoven, Bartók e Mahler, ou Leonard Bernstein e Glenn Gould, e os cenários sejam as casas onde decorrem os diálogos ou o retiro de dez dias em que Ozawa trabalha com jovens músicos e que Murakami reporta. O tempo da recolha de conversas dura dois anos, o suficiente para se compreender o modo como evoluiu a relação, bem como todos os apartes que Murakami vai incluindo sobre a natureza da música, desde os clubes de jazz às grandes salas sinfónicas, passando pelos temas de cinema, ou as edições discográficas com que surpreende o maestro, levando o leitor a fazer parte de um mundo de sonoridades musicais que a maioria desconhece.
O prefácio do maestro Martim Sousa Tavares, responsável também pela revisão dos termos próprios da música clássica, não deixa de colaborar na importância deste volume. Questiona como terá chegado Música, Só Música às mãos do leitor, sugerindo que será devido ao nome de Haruki Murakami. Acrescenta que o resultado será a descoberta de outras facetas do escritor: "Mais apaixonado do que entendido, rigoroso ouvinte de discos (em vinil, é claro), colecionador obsessivo e dono de uma discoteca pessoal com milhares de volumes, incluindo verdadeiras raridades, e por fim, dotado de um espírito sensível e capaz de captar as mais subtis nuances e significados da música.» Define em poucas palavras o que distingue Murakami e Ozawa: um tem o dom da palavra e outro o da musicalidade. A este faltam as palavras pra transmitir certas impressões e aquele usa essa dificuldade para a sua intervenção: "Serve-se de Ozawa e das suas memórias como trampolim para se projetar nos meandros de uma curiosidade sem fim."
Citaçãocitacao"Talvez a habilidade - e a grande prática - para a escrita torne Murakami o grande condutor destas páginas e, felizmente para o leitor, a reprodução destas conversas salte para um nível literário que faz lembrar em muito os cenários de alguns dos seus livros."
A música, recorde-se mais uma vez, esteve sempre presente na obra de Murakami. Basta lembrar o romance Kafka à Beira-mar, onde o jovem protagonista serve para estruturar uma narrativa onde Beethoven serve de metáfora ao questionamento sobre a natureza que o rodeia e responde à relação com ela - como em Thoreau - e à necessidade de se bastar a si próprio em vez de se deixar subjugar pela "civilização" que rege a humanidade.
Música, Só Música é um relato apaixonante sobre o mundo na música clássica, uma "trama" que só por si é suficiente para justificar um livro. Escrito por Murakami, ganha outra dimensão. Como o escritor refere "alguém que nunca na vida leu uma partitura musical, não consegue perceber o seu conteúdo". É isso que Murakami faz desta vez, transforma estas conversas num manancial de diálogos sobre um território muitas vezes impenetrável em páginas de literatura. Uma leitura em muito facilitada pela grande tradução de Maria João Lourenço, habitual responsável por trazer as suas obras à língua portuguesa, que mais uma vez dá uma vida especial à voz de Murakami e de uma forma irrepreensível.
Música, Só Música
Haruki Murakami e Seiji Ozawa
Editora Casa das Letras
389 páginas
Amanhã nas livrarias
O décimo Prémio Leya
O Prémio Leya tem trazido novos nomes à literatura em língua portuguesa, na maior parte desconhecidos - à exceção do autor moçambicano João Paulo Borges Coelho e do português Nuno Camarneiro -, sendo sempre uma surpresa, algumas vezes inesperadamente bem sucedida como foi o caso do romance de Itamar Vieira Junior, bem como de autores que encontraram no galardão uma rampa de lançamento - aproveitada ou não - para as suas carreiras. A edição de 2021 encontrou como vencedor José Carlos Barros, autor já publicado, e que apresentou ao júri o romance As Pessoas Invisíveis, que chega amanhã às livrarias.
O júri considerou o livro como "uma viagem por vários tempos da História de Portugal a partir de uma personagem ambígua". E é numa ambiguidade alargada que o romance se estrutura, colocando o leitor perante três tempos diferentes: um início e um fim interligados por uma jazida de ouro; um miolo dividido em duas partes: a criação de um protagonista com dotes mágicos que vive no interior do país, sucedido pelo relato das arbitrariedades de um outro no desfazer de uma revolta em São Tomé.
A narrativa sobre o ouro descoberto durante a Segunda Guerra Mundial, a par do volfrâmio que abasteceu os países em conflito, só é completada no final, com o pretexto da morte de Sá Carneiro. A narrativa do "mágico" começa à página 35 e estende-se, fundamentalmente, até à 173. Cinquenta páginas antes, surge um outro protagonista, um inspetor da Pide que tem por missão escrever um relatório para Salazar poder apagar da história colonial a referida revolta e consequente massacre. É este personagem que leva a história quase até ao fim, sendo que aquele que trouxe o leitor até meio do romance desaparece num canto obscuro de África. Deverá ser esta a ambiguidade estrutural a que se refere a ata do júri.
Se o leitor não se importar com o dispensar de um protagonista a dado momento do romance, que vai reaparecendo enquanto personagem, tudo bem. Faz falta, mesmo que aquele que conduz a ação a partir de metade do romance não seja menos interessante e poderoso. Designadamente pela violência com que conduz o apagamento do massacre, que foi, nas palavras do autor, o motivo por que escreveu esta história. Trata-se do massacre que, para seu espanto, ninguém fala, evoca ou investiga, o de fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe.
Uma das particularidades de As Pessoas Invisíveis é ter um registo pouco habitual, misturando na narrativa muitos vocábulos que se usam pouco e que facultam uma cor muito própria à linguagem que o autor escolheu, obrigando a uma rapidez na leitura pela satisfação que concede ao leitor. Até a própria "montagem" dos vários cenários, incorporando em muito a natureza, bem como uma construção tão inteligente como despretensiosa dos vários intervenientes, a par de descrições que ficaram ou não para a História, oferecem uma leitura que se justifica. Cabe, no entanto, ao leitor reestruturar o romance na sua cabeça, de modo a compreendê-lo em todos os níveis da tal ambiguidade.
As Pessoas Invisíveis
José Carlos Barros
Editora Leya
326 páginas
Amanhã nas livrarias
O mal por João Tordo
Naufrágio é o título do mais recente romance de João Tordo. Calhou à trama deste livro coincidir no tempo do seu lançamento com a revelação pública de um dos grandes escândalos de assédio sexual, o da Faculdade de Direito de Lisboa, razão pela qual a sua leitura justifica-se ainda mais. Já o seria, pois Tordo tem acostumado o leitor a romances inesperados, principalmente bem organizados e nos quais a linguagem dos personagens fala diretamente a quem tem os seus livros entre mãos.
Tudo tem início com as acusações de assédio feitas por antigas alunas, bem como outras jovens, que acontecem sem o visado ter conhecimento. Como vários dos protagonistas do autor, também Jaime Toledo é alguém que está a viver à margem da sociedade. É a editora do escritor que o avisa do que está a acontecer, uma catadupa de críticas que o tornam num escritor maldito e cuja obra será cancelada. O romance parte desta situação e assim caminha até uma boa parte, e, mesmo que esta sombra nunca deixe de pairar, a narrativa acaba por se encaminhar para os lados que normalmente não são conhecidos além do das vítimas.
Toledo não é um protagonista fácil. Provocou situações em nome da arte que deixaram de ser aceitáveis com o fim de um machismo reinante após o movimento Me Too, e Tordo inscreve-o bem nesse regresso ao passado para investigar o que fez. Contrapõe as personagens que foram vítimas e dá o retrato de ambas as partes, recorrendo a várias imagens literárias, religiosas e da pintura, na deambulação pela culpa. A expiação dos pecados não será fácil e a nível de criação literária compreende-se através do livro como é necessário ir mais além do que a realidade noticiosa tem vido a revelar. Não evita usar a obra de um outro escritor, Antonio Muñoz Molina, para se encaminhar para o fim que pretende dar ao livro, recuperando um romance que passou demasiado despercebido e assim poder ter um paralelo para o seu Toledo. Tal como não evita mergulhar no comportamento de muitos artistas conhecidos, sendo um deles um pintor inventado que se defende das mesmas acusações com a opinião de que sem a transgressão o artista e a arte não existem, bem como de outras situações que a história tem registado e a que foi dada pouca importância em devido tempo.
João Tordo vai cozendo várias figuras para fazer companhia a Jaime Toledo, mas só no final do livro se percebe a sua essência, como é o caso de um saramaguiano cão, de um jovem que lhe vende um barco-refúgio, de um ex-futebolista prevaricador, de uma justiceira da televisão e de uma empregada de restaurante. Uma galeria de personagens em que Toledo se encaixa para penetrar nessa espiral infernal de revisitação do mal - numa viagem ao passado em que recria fantasmas que o protagonista gostaria que fossem à sua medida e não tão superiores como se transformarão.
Tal como o protagonista diz a poucas páginas do fim, "às vezes, inventamos o mundo», é imperioso avançar-se neste epílogo sem pressa, ou o leitor será obrigado a relê-lo para perceber o que aconteceu a partir do momento em que o autor passa a narrativa para um outro nível. Aquele em que levantara o véu como no fecho do romance de Molina, Os Teus Passos nas Escadas.
Naufrágio
João Tordo
Editora Companhia das Letras
318 páginas
dnot@dn.pt