Três concertos imperdíveis nos Dias da Música

As escolhas do crítico de música Bernardo Mariano para estes três dias de concertos no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
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Berlioz e o grande mito faustiano

Nesta noite (21.00), no Grande Auditório do CCB, quatro solistas vocais, três coros (Coro São Carlos e dois juvenis) e uma vasta orquestra (Sinfónica Portuguesa) interpretam A Danação de Fausto, de Hector Berlioz (1803-1869), sob a direção de Frédéric Chaslin. Em quatro partes mais epílogo, com mais de duas horas de duração, A Danação de Fausto é uma espécie de grande cantata dramática (Berlioz chamou-lhe "lenda dramática"), baseada no I Fausto de Goethe. A confrontação de Berlioz com o Fausto deu-se em 1828, por duas vias: a famosa tradução de Gérard de Nerval e as 17 geniais litografias assinadas por Delacroix para ilustrar a 2.ª edição da tradução de Stapfer. Dessas litografias disse Goethe em carta a Eckermann: "Devo admitir que elas ultrapassam mesmo a minha conceção em algumas cenas!" E não há dúvida de que a imaginação cénica de Berlioz foi excitada pela visão desses desenhos do grande pintor romântico. Berlioz escreveu primeiro uma música de cena (1829), que depois renegou, mas voltaria ao tema em 1845, escrevendo a obra no decurso de uma digressão pela Europa central. A estreia, em dezembro de 1846, na Opéra Comique de Paris, foi um desastre financeiro e de crítica, deixando Berlioz endividado e em crise criativa. A obra seria porém bem acolhida na Rússia, em Berlim e em Londres nos anos seguintes. O sucesso em Paris sobreveio só em 1877 (já após a sua morte), graças aos esforços conjugados de dois grandes maestros: Colonne e Pasdeloup. A primeira versão encenada da obra viu-se em Monte Carlo, em 1893 e essa tem sido uma forma comum de apresentação da obra desde então: em 2015, na Ópera de Paris, Fausto "virou" o astrofísico Stephen Hawking e a hubris era a colonização de Marte.

Músicos tolos num Bosch perdido

Para sábado, recomendamos o concerto das 19.00, na Sala Luís de Freitas Branco. O bizarro título do mesmo - O Concerto dentro de Um Ovo - deve-se a uma cópia de um quadro (perdido) de Bosch no qual se vê um grupo de músicos cantando numa casca de ovo, imagem que tem a conotação de tolos, descuidados, imprudentes ou aluados. Intérprete será o excelente quarteto vocal britânico Orlando Consort, que celebra ao longo deste ano três décadas de atividade. Tal imagem motivou os Orlando a preparar um programa dedicado à música flamenga no tempo de Bosch, procurando inclusive compositores com ligações à cidade de Hertogenbosch, que era na altura uma das mais populosas da atual Holanda. A Flandres (entendida desde o atual norte de França até à Frísia), que em 1482 passou dos duques da Borgonha para a casa de Habsburgo, foi ao longo dos séculos XV e XVI berço dos maiores compositores europeus da época, bastando para tal mencionar nomes como os de Guillaume Dufay, Johannes Ockeghem, Jacob Obrecht, Josquin Desprez ou Roland de Lassus. No programa dos Orlando figuram Ockeghem e Josquin, mas também Heinrich Isaac, um quase exato contemporâneo de Bosch, além de dois compositores que Bosch poderá bem ter conhecido pessoalmente: Pierre de la Rue, do qual se comemoram neste ano os 500 anos da morte, e Matthaeus Pipelare, bem menos conhecido, que foi diretor da capela da importante Irmandade de Nossa Senhora, criada em Hertogen-bosch em 1318. O compositor em falta é Thomas Crecquillon, outro quase exato contemporâneo de Bosch, cuja presença é justificada pelo quadro que mencionámos no início: a partitura que os músicos seguram é uma chanson de Crecquillon intitulada Todas as Noites Que sem Vós Me Deito.

Schumann e o Paraíso na Pérsia

Começámos com uma descida às trevas, terminamos com uma ascensão à luz, segundo o velho adágio "per aspera ad astra". A obra em questão é O Paraíso e a Peri, o op. 50 de Robert Schumann (1810-1856) que se ouve às 19.00 de domingo, no Grande Auditório, por cinco solistas vocais, Coro Gulbenkian, Orquestra XXI e direção de Dinis Sousa. Esta obra é considerada o cume da produção coral-sinfónica do compositor alemão, na qual figuram igualmente umas Cenas do Fausto de Goethe e duas "joias": Requiem para Mignon (Goethe, de novo) e A Peregrinação da Rosa. Inspira-ção para Schumann foi o conto homónimo, segunda das quatro histórias contidas no romance orientalizante de Charles Moore Lalla Rookh, publicado em 1817. Uma história passada no tempo do imperador mogol Aurangzeb (o Taj Mahal foi construído para sua mãe), cuja corte tinha grande influência da cultura persa, o que explica a cosmogonia persa por trás desta história. Em breve: Peri é uma entidade espiritual-angelical que foi expulsa do Paraíso, onde só voltará a entrar se reunir sucessivamente três oferendas ao Céu. O final é feliz.
Tal como em Berlioz, também aqui estamos diante de uma obra híbrida, mas ao contrário de Berlioz, o influxo, a seiva, aqui, é toda dada pela experiência de Schumann enquanto genial autor de Lieder, fazendo que a obra retenha o universo emocional e a riqueza melódica do Lied, mas amplificado pelos meios corais-orquestrais. A narrativa é totalmente dominada pela heroína (a Peri do título), parte destinada a um soprano dramático. A obra articula-se em três partes, num total de 26 números musicais, durando cerca de 90 minutos. A estreia, com enorme sucesso, ocorreu em Leipzig, em dezembro de 1843.

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