O governo de Jair Bolsonaro montou um "orçamento secreto" no final de 2020 para distribuir dinheiro por deputados e senadores de forma a ganhar apoio no Poder legislativo. O esquema, com verbas em torno de 3 mil milhões de reais [perto de 500 milhões de euros], incluiu a cedência de tratores e outros equipamentos agrícolas aos parlamentares por preços 259% acima dos valores de referência, razão pela qual o escândalo foi apelidado de Tratoraço..O caso foi revelado numa série de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo, que teve acesso a 101 pedidos de deputados ao Ministério do Desenvolvimento Regional, com indicação de como eles queriam receber os recursos em causa. Na altura, decorria a campanha para a eleição dos presidentes de Senado e Câmara dos Deputados, o que faz presumir que os pedidos seriam uma contrapartida ao voto nos candidatos preferidos do governo, Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara dos Deputados), que acabariam por ganhar..O Tratoraço vem, entretanto, sendo comparado ao célebre processo do Mensalão, quando no final do primeiro mandato de Lula da Silva foi descoberto um esquema de troca de votos no Congresso a favor do governo por verbas públicas..Para Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, uma ONG criada com o objetivo de controlar os orçamentos públicos, essa comparação tem razão de ser. "Esta relação promíscua entre executivo e legislativo existe há já vários anos e vários governos, só as formas dessa relação mudam com os tempos".."E o artifício atual, as "emendas do relator geral", apresentadas juntamente com o orçamento em dezembro de 2020, na ordem dos tais 3 mil milhões de reais, e atribuídas a deputados, sem se saber o critério, pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, aparentemente para influir nas eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, é comparável, sim, ao Mensalão", diz ao DN..Não apenas ao Mensalão mas também a expedientes semelhantes que o antecederam e sucederam, sublinha Castello Branco. "Como as verbas dadas pelo Governo Temer para que os deputados blindassem o então presidente das denúncias por corrupção de que era alvo, ou na votação para permitir o instituto da reeleição de Fernando Henrique Cardoso ou, antes ainda, no caso dos "anões do orçamento", assim chamado porque deputados, de facto, de baixa estatura se envolveram em fraudes do tipo", continua o economista.."Neste caso concreto", acrescenta, "é relevante também ser um "orçamento secreto", que só veio à tona por investigação de um jornalista de O Estado de S. Paulo". "Ambos, Mensalão e Tratoraço, são feitos na surdina, longe do escrutínio público, e têm a mesma finalidade, alugar uma base parlamentar de apoio", corrobora o cientista político Vinícius Vieira, ouvido pelo DN..As emendas, instrumento que o Congresso Nacional dispõe para participar no orçamento, são consideradas, na teoria, uma forma de descentralizar a distribuição de recursos públicos. "No parlamento britânico, é natural que sejam dirigidos mais recursos para as bases eleitorais dos deputados conservadores, se os Tories controlarem o parlamento, no parlamento português, a mesma coisa para as bases dos deputados do PSD, se for esse o partido no Poder", começa por dizer Vieira.."No Brasil, porém, as bases de apoio ao governo são constituídas só em torno desse toma lá dá cá e não em torno de um programa", o que derivou na criação do chamado Centrão, um grupo de partidos que apoia qualquer governo, de esquerda ou de direita, em troca de nacos orçamentais.."O que motiva estas relações é este presidencialismo brasileiro que, embora presidencialismo, é muito dependente de um parlamento com cerca de 30 partidos", assinala Castello Branco.."Já se tentou mais de uma vez criar cláusulas de barreira [restrição no parlamento a partidos com pouco percentual de votos] para diminuir o número de partidos e permitir bases mais homogéneas, mas foram derrotadas, no entanto, no Supremo Tribunal Federal", lembra Vieira..Dessa forma, por mais bem-intencionados que sejam os presidentes, tanto Fernando Henrique Cardoso, como Lula, como Temer ou, agora, como Bolsonaro, "acabaram por entrar no jogo de cabeça", acrescenta o politólogo. "Algumas interpretações dizem que talvez Dilma Rousseff tenha caído por não querer jogar o jogo, talvez, embora eu ache que ela caiu muito mais por culpas próprias"..Bolsonaro, embora tendo prometido em campanha e já eleito, combater o Centrão e o "toma lá dá cá", viu-se refém deles quando se sentiu ameaçado pelos mais de 100 pedidos de impeachment na gaveta da mesa do presidente da Câmara dos Deputados. E, desse modo, "a alta nata de tudo que não presta no Brasil", forma como o presidente se referia ao Centrão, recebeu do atual governo um volume recorde de emendas parlamentares..A oposição já entrou com um pedido de investigação do Tratoraço no Tribunal de Contas da União (TCU). "Apresentei, enquanto líder do bloco parlamentar da minoria na Câmara dos Deputados, uma representação no TCU para que seja investigado o Tratoraço do governo Bolsonaro, o esquema que supostamente girou, às escondidas, 3 mil milhões para compra de apoio de parlamentares e de tratores sobrefaturados", disse Marcelo Freixo, deputado do PSOL, partido de esquerda. No limite, o tema pode gerar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ou impeachment..Para o pré-candidato Ciro Gomes, do PDT, de centro-esquerda, "a roubalheira aumentou e se disfarçou, como nunca, no governo Bolsonaro". "O festival de emendas do aluguer do Centrão é um crime gigantesco que precisa ser apurado e punido", afirmou..As consequências do escândalo atingiram a Ibovespa, bolsa de valores de São Paulo. "É só mais uma coisa a trazer ruído e a complicar não só a recuperação da economia, mas os próprios mercados, colaborando para forte volatilidade", disse Álvaro Bandeira, economista-chefe do banco digital Modalmais, ao jornal Valor..Na internet, as hashtags "tratoraço" e "bolsolão" dominaram a rede social Twitter, onde proliferaram memes com Bolsonaro atrás das grades ou o seu lema "Deus acima de todos" transformado em "corrupção em cima de todos"..O Ministério do Desenvolvimento Regional, entretanto, repudiou as reportagens do jornal O Estado de S. Paulo. "A lei orçamentária é a principal peça legislativa discutida pelo Congresso Nacional, com ampla divulgação para a sociedade, inclusive por parte desse jornal. A execução do Orçamento é divulgada com transparência no site", reagiu em nota o ministério. O ministro, Rogério Marinho, prometeu, no entanto, em entrevista ao jornal digital Poder360, "mais transparência no orçamento a partir deste ano"..Bolsonaro, que segundo sondagem de quinta-feira do Instituto Datafolha atingiu o nível mínimo de aprovação desde o início do mandato, 24%, e que está sob fogo cerrado na CPI que apura a responsabilidade do governo nos mais de 430 mil mortos por covid-19 no país, chamou o assunto de "invenção" e os jornalistas que o revelaram de "canalhas".