Não é por acaso que Passos Coelho resolveu ficar a viver na Rua da Milharada, Massamá. Além de dois salões de beleza, importantes no disfarce das rugas causadas pelos intermináveis chás com a Dona Merkel, tem ao pé de casa o que necessita: uma escola de condução, para aprender a arte de conduzir a lusitana carrinha com competência e civismo (até ver, prefere fazê-lo pelas faixas do centro e da direita), e um estabelecimento que compra ouro, último recurso caso o Estado tenha de alienar as suas douradas reservas - e não estamos a falar do André Villas-Boas. Massamá é assim: um sítio onde se pode viver sem precisar de Lisboa para nada. Aliás, o pior de Massamá é, como se sabe, a viagem para Lisboa. Um dia destes, prestes a reunir com os líderes europeus, Passos ainda vai dar um toque para o telemóvel de Sarkozy: «Desculpa lá, estou há uma hora no IC-19 e isto não anda» (pausa dramática) «vem cá ter». Se o mundo fosse justo cada um dos cerca de trinta mil cidadãos da freguesia teria uns batedores privados para abrirem caminho em direcção à capital, bastante transformada, pela clonagem de prédios, numa Massamá com centro histórico. Sim, estivemos lá - e estivemos lá num instante significativo: o momento da tomada de posse, a chegada ao poder não de um filho mas de um enteado da terra. A metáfora não é gratuita e quer o repórter da escrita quer o da imagem podem testemunhá-lo - a verdade é que no momento em que Passos proclamava «Portugal não pode falhar e eu sei que Portugal não falhará», Massamá, pelo menos aquela que frequentávamos (o Livro Café), começava por falhar na atenção ao rapaz. Paulo Futre, esse, parecia um filho - e um ídolo - nesse local de paragem da estudantada. A pouca gente sentada nas mesas estava concentradíssima nos apontamentos que tinha à frente.Se Passos for na religião tão antimonopolista como é na economia, estará satisfeito se souber que no lugar onde mora há pelo menos oito lugares de culto - de diferentes credos - que se conheçam. Ainda fomos bater a uma das portas divinas, num edifício rosa mesmo ao lado do café, para sabermos se o discurso havia sido seguido nas mais transcendentes esferas do território massamense mas não encontrámos nada nem ninguém. Espreitámos, subimos uma escada, vimos bandeiras de Angola, do Brasil e de Portugal, mas Deus, o Deus da Igreja Evangélica Reviver em Cristo, não estava em casa. Desconhecemos se o primeiro-ministro conhecerá o assunto mas historicamente Massamá é o sítio ideal para o descanso do guerreiro (não confundir com Vilamoura, lugar de descanso do menino guerreiro). Vem de um termo árabe, Mactamã, «lugar onde se toma boa água», o que se justifica pela sua situação geográfica, algures entre os territórios lisboeta e sintrense, muito jeitoso em tempos idos para caçadores e viajantes. Como «orgulho da terra», apresenta o famoso chafariz - que estava a ser retocado quando por lá passámos. O vermelho do escudo do brasão é uma forma de fixar a marca muçulmana e o amarelo da bandeira o trigo outrora abundante na região. Justamente esse período de abundância lembrou António Magalhães, agricultor septuagenário que encontrámos no giro que demos numa das antigas seis eiras da freguesia, Casal Gouveia. Comentou com uma certa ironia, bem plantado na sua horta de batata, cebola e tomate: «Trocaram o trigo pelo cimento.»Quem achará graça à produção daquele que podia ter sido a primeira escolha para a pasta da Agricultura (tem na área experiência de mais de trinta anos) é a miudagem com a qual nos cruzámos mesmo ali ao lado, a brincar no recreio de uma das várias escolas infantis que existem neste sítio tão juvenilmente habitado. É um lugar de uma boa mistura, ainda pouco vulgarizada nos lugares de decisão nacionais: miúdos brancos e negros em alegre coreografia a propósito de um jogo dirigido por uma monitora. Um deles trazia vestida uma T-shirt do Real Sport Club Massamá, este ano sobrevivente a custo da segunda divisão e de onde veio, por exemplo, esse prodígio chamado Nani - moço que, pelos seus públicos desvarios, acaba por ter alguma coisa que ver com a doce designação da escola: «Os Pestinhas».Presume-me que «Pestinhas» não terá sido o termo usado pelo proprietário de um Mazda para classificar quem, com a ajuda do macaco do próprio carro, lhe fanou as quatro rodas durante essa manhã da tomada de posse, numa zona relativamente próxima da casa do nosso primeiro. Nem os habitantes de Massamá Norte, território de edificações muitas e supermercados vários, pertencente a outra junta de freguesia (Belas), onde, disse-nos alguém que conhece o que a zona gasta, se funde uma vida de dormitório e alguns episódios que tiram o sono a qualquer um (topámos um vidro partido a meio da tarde num automóvel estacionado mesmo em frente a um edifício da Junta). Há quem não tolere prevaricações - e um deles é o dono do café Massaboa, na Avenida 25 de Abril, a mais larga e imponente da freguesia. «Orlando Grosse (angolano). Barry (guineense). Sr. Joaquim (angolano).» Cuidadinho. Se Passos não cumprir as promessas que desenhou no programa de governo ainda poderá ir parar a esta lista de devedores do café que inclui, não sem alguma bizarra originalidade, a nacionalidade de cada um. Não, não admiraria nada encontrar daqui a uns aninhos na mesma folha «Passos Coelho (Trás-os-Montes)».Se os eleitores destratarem Passos, Passos pode sempre pô-los numa importante creche da terra: o «Infantário do Povo», fundado em 75. É uma designação que faz sentido - o povo revela-se, por vezes, nas suas ânsias e consumos, um pouco infantil. Numa brevíssima e ocasional troca de palavras com Francisco Mateus, um dos membros da direcção desta Instituição Particular de Solidariedade Social, percebemos que longe vão os tempos revolucionários, mas há pormenores pitorescos que ficaram: «A verdade é que compramos material numa empresa chamada A Luta.» E riu-se, antes de voltar para dentro.Num cafezinho com um amigo, ficámos a conhecer uma possibilidade de narrativa de quem cresceu em Massamá. Sérgio Gregório, de 28 anos, contou os prós e contras de crescer ali - ele que depois veio a viver em Belfast, para aprofundar os seus conhecimentos de sonoplasta. Lembrou uma adolescência de quem viu muitas caras de mau, assaltos, «arrastões» no Bowling (salão de jogos) onde se reúne a «malta nova», personagens como o «Corvo» (que, após ter feito mau nome, marcou encontro com a sociedade local para se declarar inocente) mas sublinhou também uma das virtudes raras do local: cresceu com indianos, angolanos e russos no liceu. Falou também de encontros da rapaziada no «Spi», antiga quinta do general Spínola hoje transformada num parque verdejante.Visita ao Shopping de Massamá para finalmente tentar adquirir o primeiro romance de Pedro Vieira, sardónico autor de um livro que consagrou a freguesia no título. «Já tivemos mas agora está esgotado», contou a funcionária. Sem Última Paragem: Massamá no saco, ainda houve tempo para folhear Empenhai-vos, de Stephane Hessel, título que podia ser um pedido ao Dr. Passos e ao seu gang governativo. Outro título, este de um filme, Os Substitutos, pareceu uma alusão à recente mudança no poder executivo. Faz parte de um dos cartazes afixados no vidro do clube de vídeo situado junto à estação de comboios e que, com o milagre da multiplicação dos downloads ilegais, parece ter fechado portas. Mesmo à porta da estação (em obras, tal como outras zonas da freguesia), um episódio de contrastes: lado a lado, uma banca de venda de tecnologias (de TV, net e telemóvel) e uma banca de venda de fruta, daquelas que podiam estar lá há cem anos. As colunas avisavam: «Comboio suburbano, procedente de Mira Sintra com destino a Roma-Areeiro.» Tínhamos vindo não de comboio mas de carro e o aviso recordava ter chegado a hora de regressar. Voltámos para Lisboa nas calmas - sem batedores e sem - oh, descanso maior - ter o FMI à espera. A máquina e o bloco iam, por irresponsabilidade dos donos, sem cinto de segurança e cheiinhos de anotações. Uma delas ficou guardada para o fim e revela uma qualidade maior de Massamá e uma lição para quem, vivendo na terra há uns anos, sobe agora a um dos púlpitos da Nação: uma freguesia que dá o nome de um cartoonista (Stuart Carvalhais) à sua escola secundária sabe com certeza rir-se de si própria. Vamos ter fé nisso.