Todos os rapazes e as raparigas da idade de Johnny

O desaparecimento de Johnny Hallyday, na quarta-feira, 74 anos e 58 de carreira, veio recordar os anos de ouro da <em>chanson française, </em>desde as mil composições de Charles Trenet até aos anos 1960 e 1970. Inesquecíveis nomes como Juliette Gréco, Jacques Brel, Gilbert Bécaud, Léo Ferré
Publicado a

Era um bad boy em versão mauvais garçon, o Johnny Hallyday que morreu na quarta-feira, aos 74 anos, de cancro no pulmão. Não seria totalmente correto classificá-lo na chanson française, na qual se encaixam certamente Aznavour, Juliette Gréco, Françoise Hardy ou Julien Clerc, para falar apenas dos que ainda estão vivos entre os que dominaram o mundo francófono da música antes da invasão anglo-saxónica.

Johnny era do rock, da pesada, en blue jeans et blouson cuir (como cantou Adamo), a precisar de cocaína para sair da cama, e interpretou muitas adaptações em francês de originais anglo-saxónicos - nem The House of de Rising Sun dos The Animals lhe escapou, traduzida para Le Pénitencier.

O mesmo aconteceu no outro sentido, mas sem Johnny na história. Claude François, que teve uma vida breve, compôs com Jacques Revaux, em 1967, uma canção chamada Comme d'Habitude que Paul Anka traduziu para inglês com o título My Way - aquela que até parece ter nascido na voz de Frank Sinatra. Mas há mais, e aí as composições de Jacques Brel e de Gilbert Bécaud estão entre as mais traduzidas.

Na geração dos anos 1960 da música a que poderíamos chamar de pop, por oposição à mais séria em que o mesmo Jacques Brel é um nome maior, três cantores ocupavam muitas páginas da revista Salut les Copains, devorada por fãs também em Portugal: o casal Johnny e Sylvie (Vartan, de ascendência búlgara) e a morena Françoise Hardy, mais doce e menos rockeira, que em 1962, com 18 anos, gravou o hit Tous les Garçons et les Filles. Havia muitos outros, como Adamo, Mireille Mathieu, Sheila, France Gall, que ganhou o Festival da Eurovisão em 1965 com Je Suis Une Poupée de Cire.

O Johnny (de seu nome Jean-Phillipe Léo Smet, filho de um belga e de uma francesa e criado em Inglaterra) seguidor de Elvis foi-se adaptando às novas correntes, incluindo o heavy metal e por aí fora. Apesar de ter andado alguns anos de Harley Davidson pelas estradas de Los Angeles, Johnny nunca foi reconhecido fora do ambiente francófono - no qual vendeu 110 milhões de discos. Vartan, entre as baladas e o rock, chegou a cantar no Monumental, nos tempos do ié-ié.

E Françoise Hardy passou por uma péssima primeira experiência em Lisboa - um dos piores dias da vida dela, disse - com os fãs em delírio a bater nos vidros do carro quando seguia para a RTP, onde gravou um programa e foi entrevistada por Carlos Cruz, em 1964. Mas os três continuaram sempre a cantar e só abandonaram os palcos e os discos recentemente, sem que o resto do mundo desse por isso.

Longe dos gritos e histerias, foram muitos os músicos de enorme qualidade que cantaram em francês, com carreiras de longa duração, numa tradição que poderíamos fazer nascer nos tempos da ocupação alemã e da chegada do jazz, quando Paris era o centro do mundo das artes.

Ou décadas antes, se reconhecermos as raízes em Charles Trenet, com a sua voz de amigo lá da rua, autor de mais de mil canções e artista completíssimo, que começou a dar música a poemas de Jacques Prévert e Paul Éluard. Contemporânea dele e reconhecida em todo o mundo, Edith Piaf, a miúda - La Môme - com a sua vida trágica que não chegou aos 50 anos. Yves Montand, que foi namorado dela e começou pela música nesses tempos da Resistência. Gilbert Bécaud, também da Resistência, com a sua energia e tão traduzido e adaptado em inglês - com destaque para Et maintenant foi What now My Love no repertório de Shirley Bassey, Sinatra, Elvis Presley e muitos outros, e que escreveu com Neil Diamond September Morn (C'est en Septembre) e Love on the Rocks.

Juliette Gréco é um dos ícones dessa longa geração dos artistas do existencialismo, amiga de Boris Vian e de Brel, fã de Django Reinhardt e namorada de Miles Davis (e, diz-se, de Albert Camus). Começou a cantar em 1949 letras de Jean-Paul Sartre e Boris Vian e deixou os palcos em 2015.

E há muitos mais nomes desta música dos bons tempos da língua francesa, representando uma enorme mistura de nacionalidades e origens. O filho de judeus-ucranianos Serge Gainsbourg que alimentou com as suas composições dezenas de cantores e fez com Jane Birkin o famoso Je tAime, Moi non Plus. O arménio Charles Aznavour que ainda no ano passado, com 92 anos, encheu em Lisboa o Meo Arena. O enorme Jacques Brel, que ridicularizou com bonomia os belgas e os burgueses. O italiano Léo Ferré, inspiradíssimo compositor e intérprete excecional da raiva e da ternura de uma geração. Jean Ferrat que cantou Aragon. Georges Brassens, outro nome da Resistência, entre a música e a literatura. O ítalo-grego Georges Moustaki, eterno estrangeiro Avec Ma Gueule de Métèque. A ítalo-egípcia Dalida que foi miss Cairo em 1954. A parisiense misteriosa Barbara. Colette Magny, a voz rebelde do combate político de Paris 1968.

Fora de portas, o esplendor destas gerações arrefeceu nos últimos 40 anos. Mas em França continuam a ser seguidos por fãs. E hoje, a acompanhar o cortejo fúnebre de Johnny Hallyday entre a Place de lÉtoile e a Igreja da Madalena, percorrendo os Campos Elísios, são esperados milhares de fãs no adeus ao Elvis francês.

Diário de Notícias
www.dn.pt