Lugar dos Dois Caminhos, 15 de Outubro.O Ophelia levou mais um ramo à tipuana. É o segundo ramo relevante que os furacões lhe levam, e nem sequer se pode dizer que sejam só os furacões com nome de mulher: no ano passado foi o Gaston que nos obrigou a andar pendurados em escadotes, o Chico e eu, até darmos por amputado e selado o primeiro grande ramo esgarçado..Por esta altura, já se tornou evidente: tipuanas, nesta freguesia montanhosa paradoxalmente adjectivada Chã, são coisa que não resulta. Se o vento não as apanha por cima, apanha-as por baixo. Se não as apanha por baixo, apanha-as pelo meio. No fim, esgarça sempre qualquer coisa - basta vir um furacão, e aqui vem sempre..Mas, com esta tipuana em particular, eu tenho uma relação. Ela constituiu, com o jacarandá que lhe plantámos em espelho, o par de árvores com que, há cinco anos, celebrámos a mudança para a ilha. Não a podarei a meio, como sugeriu o Chico, nem a arrancarei pela raiz, como eu próprio cheguei a admitir. Ela tem o direito a morrer de pé e, até que morra, limitar-me-ei a amputar-lhe os ramos esgarçados e a selar as feridas com fleet coat..Ainda vai viver mais do que nós..Lugar dos Dois Caminhos, 16 de Outubro.Quando eu era criança, não amava certas plantas como as vim a amar. A fona-de-porca, que era a única árvore cujos ramos eu conseguia cortar com o meu canivete, não servia sequer para fazer uma fisga, porque ao fim de dois ou três dias estava ressequida. E a simples existência da roca-de-velha era uma chatice, porque, sempre que a minha mãe queria cozer pão, mandava-me apanhar folhas para tender as brindeiras e lá tinha eu de interromper os meus importantes afazeres para ir tratar do recado..Depois deixei a ilha e tudo mudou. Logo nas primeiras férias, voltei a casa, subi a mata e deixei-me em frente a essas plantas, a pensar: "E agora, como é que eu vivo sem isto?" A fona-de-porca, a que também chamavam tabaqueira, dava umas flores roxas lindas, que a seguir substituía por umas bolinhas cor-de-laranja parecidas com tomates-de-capucho, e para que eu nunca tinha olhado duas vezes. Lembro-me de estar ali, a olhar para aquelas bolinhas, e de perceber que tinha na mão a coroa florida de uma roca-de-velha (ou roqueira). Sem dar por isso, extraía cada uma das suas pequenas flores, mordia-lhe a ponta e sugava aquele suco açucarado que, na verdade, era a minha infância toda..Chamávamos-lhes "chupes", como talvez algumas crianças ainda façam. Durante os vinte anos que vivi fora, tive sempre saudades de "chupes", e a primeira coisa que fiz quando subi esta mata com a Catarina, a mostrar-lhe onde fora feliz, foi apanhar uma coroa de roca-de-velha, extrair--lhe uma flor, morder-lhe a ponta e dar-lhe a provar esse suco de que ela nunca mais se esqueceu o nome também: "chupes"..Entretanto, regressado de vez - de vez? - a casa, começaram por ser uma memória viva, depois uma paisagem inerte e finalmente uma arrelia, tanto a fona-de-porca como a roca-de-velha. Eu tinha agora responsabilidades, responsabilidades sobre a terra, e infestantes de tais naturezas, inexoráveis, indomáveis, davam trabalho a combater e não se chegavam a erradicar..Às vezes olhava aqui da janela do escritório e todos os cerrados por aí fora me pareciam um mar de fonas-de-porca. E uma vez subi a mata com o Chico, a pedir-lhe que reabrisse o trilho por onde o meu avô fazia descer os carros de bois, e, ao chegarmos ao que fora o cerrado do Aguilhão, ele disse:.- Olha, tanta roca-de-velha para eu cozer pão!.Mas eu, que não sou padeiro de profissão, tornei a torcer o nariz, porque a roca-de-velha voltara a multiplicar-se, diabólica, e em breve haveria de tomar estes parcos alqueires, destruindo-os para sempre, como já destruiu tantos parcos alqueires e tantos infinitos hectares por estas ilhas..Isto foi até ontem. Ontem, o país acordava para as imagens e os números de mais um fim-de-semana devastador nas florestas e nas aldeias portuguesas. Dezenas de pessoas tinham morrido, centenas caído na miséria, milhares feito as contas ao dia em que chegaria a sua vez. Subi esta mata, com o Melville, e ele pôs-se de imediato a cirandar por entre as acácias e as faias - perseguindo pássaros e sombras, celebrando o milagre de estarmos vivos. Até que, nas suas coisas de cão, se deteve junto a uma roca-de-velha. Acima da sua cabeça, a folha luzia de humidade e vigor, e mais acima ainda, acima da cabeça do meu cão e da cabeça da roca-de-velha e da minha própria cabeça, uma enorme fona-de-porca projectava a sua sombra branda, enquanto algures ao fundo se ouvia a enxada de um agricultor e, mais ao fundo ainda, um galo cantando a desoras..E foi assim que eu voltei a amá-las, à fona-de-porca e à roca-de-velha. Numa terra em que imperassem os fogos, a sua indisciplina e a sua impropriedade teriam feito delas as primeiras a perecer. Mas nós não temos fogos. A bem dizer, não temos. Aqui chove e, circunscrito pelo mar, este é um campo de onde as pessoas ainda não desapareceram. E, se algum dia eu me esquecer da sorte que tenho, talvez sejam elas, a fona-de-porca e a roca-de-velha, a lembrar-me.