Registo que, nos últimos tempos, os títulos das notícias e das reportagens do DN têm sido mais atraentes, imaginativos e leves. Deduzo que está em curso uma aposta em mais investimento no tempo dedicado a espremer meninges para conseguir mais fácil cativação do leitor. É este o saboroso paradoxo da criação do título: ele resulta tanto mais ligeiro e convidativo quanto mais nos encerramos na gravidade de ter de o construir inspirado, limpando-o depois de toda a transpiração que implicou..É uma regra básica do comércio - e não estou a falar de vender gato por lebre - e de toda a comunicação. Se os olhos não ficarem prisioneiros da notícia, se a ponte entre emissor e recetor não se estabelecer de forma sedutora, estaremos perante um ato falhado: o que se tinha para oferecer era muito bom, mas ninguém ficou a saber. Ai do restaurante que queira distinguir-se de uma vulgar manjedoura se não tiver um serviço de copa..Além da vontade de criar por parte de quem é responsável pelos títulos, o DN beneficia de uma decisão estratégica muito feliz: a flexibilidade do grafismo perante a vontade de comunicar. Não assisti por dentro aos estertores do parto do período mais cinzento do DN, a seguir ao 25 de novembro de 1975, liderado por Victor da Cunha Rego e umbilicalmente comunicante com Mário Soares e Almeida Santos (os paladinos da mais ou menos liberdade que alguns hoje incensam - com mais ou menos razão - também tiveram os seus longos momentos de penumbra e mesmo de imposição de obscuridade: o nosso coração luso e a volatilidade da memória é que nos impele sempre à reconciliação, benzam-nos as divindades!). Em pânico perante o que julgava ser a manha incontrolável dos comunistas que rastejavam como toupeiras pelas entrelinhas dos seus escritos, o DN viveu anos e anos em estado de vigilância antimotim ideológico, através de três instrumentos: um controlo férreo da agenda de cobertura jornalística; uma leitura ao microscópio dos textos, contextos e pretextos, a qual se foi entranhando como a autocensura de braços caídos que encontrei no jornal quando aqui entrei no início dos anos oitenta; e uma submissamente indiscutida estética gráfica dos títulos que constitui a castração química da capacidade criativa dos jornalistas..Deve ser por isso que, já tendo redigido três propostas de livros de estilo para outros tantos órgãos de informação, coloco sempre uma advertência inicial: o livro de estilo é para ser transgredido sempre que a criatividade do jornalista encontrar solução melhor; não é para ser ovina e burocraticamente obedecido, por preguiça..Os títulos do DN, naquela altura, tinham regras apertadíssimas. Havia basicamente três tamanhos de letra para os títulos: corpo 48, ao alto de página; 36, a meio; e 24 ao fundo (o formato do jornal era broadsheet, verdadeiros lençóis à antiga). Nas páginas interiores, a escala descendente de tamanhos era de 36, 24 e 18..(Deu-se até o caso de, certo dia, termos a notícia de que António Champalimaud se preparava para regressar a Portugal, depois de ter fugido para o Brasil. O chefe da secção política, o saudoso Rebordão Correia, levou a informação à Direção e regressou com indicações para uma chamada de uma coluna na primeira página. Ora, a uma coluna, o máximo de batidas que cabia por linha eram nove, e "Champalimaud" tinha doze - nem com calçadeira se conseguiria fazer caber. O Rebordão, sempre bem-disposto, quando lhe chamámos a atenção para a impossibilidade física de aquele nome caber a uma coluna, anunciou: "Vou lá dentro perguntar se podemos escrever Xampalimô. Tem nove batidas..." Quando voltou, Champalimaud já podia regressar a duas colunas...).As duas linhas de título - só duas, exceto nas notícias a uma coluna, que eram quatro - tinham de ter dimensões aproximadamente iguais, para a linha de cima não ficar "pendurada". Os títulos não podiam ser interrogativos, negativos ou conter pontuação. (É por isso que hoje espetei ali em cima com dois pontos, morra quem se negue!).Não podiam conter discurso direto, com atribuição de quem produziu a fala cá em baixo no pós-título ou lá em cima no antetítulo. Se houvesse duas vozes em confronto, o título teria de refletir - naquele exíguo espaço - as opiniões em confronto. Sabe o leitor, em vista de tantos espartilhos, qual era o título mais comum nas páginas de política? Era: "Orçamento (ou Constituição, ou Parlamento, ou qualquer outra coisa) gera polémica." Ai que acicate! Ai que acepipe! Ai que vontade de ler a notícia, não é? Pois não era, claro. Era como se tivéssemos uma enorme vidraça de um escaparate onde colássemos uma folha A4 muito bem escrita com letra comercial feita a bico de pato: "Temos coisas para vender.".Assim foi o envenenamento do jornalismo pelas exigências da política partidária que eu conheci no DN e contra o qual disparei sempre o meu mau feitio e a rebeldia..Quem está agora no DN talvez nem se dê conta das seis fantásticas linhas - seis! SEIS! - de que dispõe para criar um título de primeira, uma manchete! E as linhas que quiser, com a largura que souber negociar com o diretor de arte - é sempre necessária esta dialética para não derraparmos para fora da pista - para fazer os títulos nas interiores..Já elogiei que baste, pelo que passamos agora ao ajuste de contas: a liberdade criativa do título é garantida para que ele seja atraente, sintético - e verdadeiro. Não está previsto - nem no Carnaval - que inclua garrafinhas de mau cheiro, expressões desprimorosas e chocarreiras. Não tem, pois, desculpa, que o DN tenha titulado, não há muito, "Tribunal diz que jeová que guiava embriagado não podia negar tirar sangue.".Para além de um título engrolado com dois "que", pergunto: o que é um "jeová"? Quer dizer-se "testemunha de Jeová" e sintetiza-se em "jeová"? Esta fórmula chocarreira está assim tão entranhada que ninguém com responsabilidades no DN se arrepiou de a ver escrita no seu jornal?.Foi esta a primeira - espero que última - vez que encontrei maneira tão desrespeitosa de falar sobre adeptos de uma determinada religião. Creio que ninguém se lembrará de chamar aos cristãos "cristos", aos muçulmanos "maomés" ou aos budistas "budas", para poupar letras: quem o fizer vai com guia de marcha para o passado, para um longo estágio de títulos amargamente cinzentos. .Recorrente - e muitas vezes protestada - é a fórmula preguiçosa e desrespeitosa utilizada até na primeira página: em vez de "professores", aparece "profs". É inaceitável. Pouco falta para os polícias sejam "bófias", os da Judiciária sejam "judites", os médicos "docs", os advogados "rábulas", as empregadas domésticas "sopeiras", os varredores de rua "almeidas" e os camponeses "labregos"... .Exige-se atenção e respeito por aqueles de quem falamos e por aqueles a quem nos dirigimos. .Um leitor manifestou a sua indignação por não haver exata correspondência entre a carta que José Sócrates enviou ao DN e o título de primeira página que a ela se referiu. Na verdade, o DN titulou na primeira página: "Carta da prisão. José Sócrates critica "cobardia de políticos" e indiferença das pessoas." E o leitor afirma que Sócrates não falou em "indiferença das pessoas". É verdade. O pós-título faz a transcrição exata da frase de Sócrates: "Processo. "Digamo-lo sem rodeios - escreve Sócrates -, o sistema vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas, do cinismo dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto".".Não era fácil resolver o problema, de modo a deixar o leitor esclarecido. A solução utilizada no título foi apenas a de transcrever com aspas afirmação "cobardia de políticos" (mesmo assim reduzindo a acusação a alguns políticos e não a todos, como no original). E, se se utilizasse a expressão "desprezo", o título só ficaria claro com a transcrição de toda a frase, o que, apesar das novas liberdades na tituleira, parece impraticável: a montra não pode ser maior do que a loja, está bem de ver..Optou-se por aquilo a que se chama título interpretativo, em que mais importante do que as palavras é o seu sentido. A escrita à pressa de Sócrates, aparentemente, traiu o seu raciocínio: escolheu mal as palavras. Há muitos anos, Mário Soares teve a estranhíssima ideia de escolher Salgado Zenha para seu ministro das Finanças. Preocupado com os gastos de combustível importado, num país a precisar de apertar o cinto, Zenha verberou "a gasolina que corre nos nossos radiadores" (citado de memória). Queria dizer motores ou carburadores. Os jornais publicaram, com rigor, radiadores. Todos se riram, a mensagem perdeu-se e a gasolina continuou a correr alegremente por dentro de qualquer coisa - emitindo dólares lá para fora..Se o jornalismo não enfrentasse estes dilemas - não teria graça nenhuma.