Titane. Novos corpos, novo cinema
O corpo em mutação. Um corpo feminino, alguém em rejeição completa ao humanismo dos nossos dias. Uma mulher que é símbolo de uma erotização masculina, de uma objetivação. A dada altura, transforma-se em algo mais. Titane é sobre os limites da dor, do prazer e da subjugação dos nossos corpos. É também a maior bomba de Cannes dos últimos anos, com muitos a compararem ao efeito de choque de Irreversível, de Gaspard Noé. Mas se a segunda longa (a primeira era Grave e em Portugal apenas passou no Indie, provavelmente o mais fascinante exemplo de um novo, novíssimo cinema francês) de Julia Ducournau tem alguma filiação cinéfila talvez passe por Christine, de John Carpenter ou Crash, de David Cronenberg.
Nesta história, há então esta mulher perdida. Chama-se Alexia e é um ídolo de danças eróticas em salões de automóveis. Alexia tem uma placa de titânio na cabeça e um ódio convulsivo que a torna numa assassina em série. Depois de fazer amor com um carro da exposição, o seu corpo transforma-se. Está grávida, em vez de leite nos seios tem óleo. A insanidade continua quando engana a sociedade e pretende ser um rapaz desaparecido. A Alexia é agora homem e é perfilhada por um chefe de bombeiros em crise de meia-idade. O amor ainda pode chegar ao seu coração...
Toda esta sinopse atesta a insanidade de uma proposta que não recua perante uma violência "gore" que quebra tabus e as próprias regras do filme de terror. Titane tem também sexo violento e transgressivo, sempre perante uma perspetiva de um discurso feminista de ataque. Em vez de a provocação ser meramente sensorial há nesta agressão um conceito filosófico que enceta uma grande questão: o que fazer com a solidão da carne? Como ultrapassar os clichés do desejo heteronormativo? A dada altura, já de cabelo rapado e seios apertados, Alexia dança "tecno chunga" numa festa de rapazes musculados como se não houvesse amanhã. Um corpo pode ser muita coisa, mas também pode ser a mais radical das experiências humanas.
Comprado para Portugal pela Alambique, Titane é já o acontecimento da competição, mesmo quando se percebe que pelo seu grafismo sexual possa não chegar a um consenso num júri presidido por Spike Lee. Se o seu imaginário irá para além do mero filme de culto enraivecido de festival só o tempo dirá. Mas as imagens de uma respiração boca-a-boca ao som de Macarena talvez fiquem como a mais insólita recordação de um abalo neste festival. Isso e o poder vertiginoso dos planos da personagem de Vincent Lindon a injectar esteróides no seu novo corpo nu. Porque em Titane, o metal e sangue (aqui com cor do esperma) fundem-se e tudo se torna sexual.
À mesma hora da gala já infame de Titane, Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro apresentavam o bravíssimo Diários de Otsoga na sala a abarrotar da Quinzena. Aplausos entusiastas e a percepção de que Gomes é visto aqui como uma "pop star". "Filme destes tempos e dos tempos dos dinossauros", disse no palco ao lado dos seus atores. Afinal, Diários de Otsoga, sem deixar de ser uma variação de Aquele Querido Mês de Agosto, é uma tropelia perfeita de "filme de Verão".