"Adoro o design do foguetão de Tintin, pelo que, de certa forma, foi no que me inspirei. Em caso de dúvida, escolha Tintin." Foi desta forma que o empresário Elon Musk confirmou as suspeitas de muitos seguidores no Twitter que repararam na coincidência de o próximo foguetão da SpaceX ter uma forma semelhante ao desenho de Hergé para a aventura lunar da personagem da banda desenhada europeia mais reconhecida no mundo..Em 1950, 18 anos antes de Neil Armstrong e Buzz Aldrin terem dado os primeiros passos na Lua, o autor belga Hergé publicava na revista Tintin as primeiras pranchas do que viria a ser a história compilada no álbum Objetivo Lua (1953), o 16.º da série do jornalista da poupa ruiva e calças de golfe, com o seu inseparável fox terrier branco, Milu..O veículo que levou Tintin ao satélite da Terra, acompanhado por Milu, o capitão da marinha mercante Haddock, o cientista "mouco" professor Tournesol e os irmãos Dupond e Dupont não tinha qualquer nome especial. Era apenas "o foguetão". Neste momento, a empresa espacial de Elon Musk está já a construir o aparelho com que tenciona levar pessoas a Marte. O seu nome oficial? Starship - nave espacial - simplesmente..As semelhanças não se ficam pelo nome (aliás, na SpaceX o aparelho é normalmente chamado de Big Fucking Rocket - BFR, tradução desnecessária...). Tanto as linhas como o funcionamento previsto - um foguetão 100% reutilizável, com descolagem e aterragem vertical - é, em tudo, reminiscente dos desenhos de Hergé..E se a versão final do foguetão (o tal "BFR", na terminologia dos engenheiros da SpaceX) só tem voo previsto para, pelo menos, 2023, está programado para o próximo mês um teste de uma versão mais pequena do aparelho. Curiosamente, também aqui há paralelo com a história de Tintin: em Objetivo Lua, uma versão pequena do foguetão é enviada num voo experimental em redor da Lua, numa missão que corre na perfeição até que uma potência estrangeira interceta o controlo remoto do aparelho, obrigando o nosso herói a ativar o sistema de autodestruição. Esperemos que Musk não passe pelo mesmo....Do berço anticomunista....Desde 10 de janeiro de 1929, quando Tintin e Milu começaram a aparecer em fascículos na revista Le Petit Vingtième, já foram vendidos mais de 250 milhões de cópias dos seus álbuns, traduzidos em mais de 70 línguas, segundo o site oficial da personagem. Mas se as histórias do intrépido jornalista em poucos anos se transformaram nas mais estonteantes aventuras de ficção - ao ponto de alguns críticos de cinema franco-belgas minimizarem o primeiro filme de Indiana Jones, Os Salteadores da Arca Perdida (1981), dizendo que já tinham visto algo parecido na obra de Hergé - o seu início teve um objetivo político..O Le Petit Vingtième era o suplemento infantil do jornal conservador belga Le Vingtiéme Siècle. E a primeira aventura de Tintin, intitulada No País dos Sovietes, era uma assumida história de propaganda anticomunista. Apesar de até conter alguns detalhes que, embora caricaturais, não estavam totalmente longe da realidade - é memorável a vinheta em que um oficial soviético diz a um miúdo esfomeado que apenas lhe dará um pão se ele declarar ser do partido. A obra é primária e o próprio Hergé assumiu embaraço pelo resultado..A história chegou a ser compilada num volume único pelas Éditions du Petit Vingtième em 1930, mas só voltou a ser republicado em 1969. Nestes quase 40 anos, Hergé regressou várias vezes às suas primeiras obras, produzindo nomeadamente versões coloridas das pranchas originais a preto e branco, mas sempre se recusou a voltar a tocar naquela que foi a primeira aventura com princípio meio e fim da sua maior criação..... ao racismo colonialista.A segunda encomenda do dono do Vingtième Siècle a Hergé, o abade Norbert Wallez, foi uma história passada no Congo, colónia belga desde 1908. Entre 1930 e 1931, nas páginas do Petit Vingtième, Tintin e Milu viajam até África e aí empreendem várias missões "civilizacionais" das populações locais. Apesar de a aventura ter já alguns dos ingredientes que mais tarde seriam imagem de marca da personagem, a ideia de superioridade colonial é por demais evidente, com os nativos "a falarem como imbecis", na descrição da Comissão para a Igualdade Racial do Reino Unido, em 2007 (desde esta altura que as edições britânicas têm de conter uma tarja a indicar que o livro tem conteúdo ofensivo)..E ainda que Hergé tenha, na década de 1940, publicado a história em álbum colorido - adaptação e colorização realizadas em colaboração com Edgar P. Jacobs, ele próprio nome mítico da banda desenhada, criador das personagens Blake e Mortiner -, este não voltaria a ser republicado até aos anos 1970, dado o mal-estar na editora Casterman com as acusações de racismo que logo surgiram..Alegações que voltaram às notícias em 2011, quando o belga Bienvenu Mbutu Mondondo interpôs um processo em tribunal tentando proibir a venda do livro. As queixas de Mondondo eram já antigas - há pelo menos três anos que tentava fazê-lo - e ganharam destaque mediático por ocasião do filme As Aventuras de Tintin,o Segredo do Unicórnio, realizado por Steven Spielberg e produzido por Peter Jackson (O Senhor dos Anéis, King Kong...). Uma película que, assumiu o realizador em entrevista, só existe porque Spielberg ficou intrigado com as comparações da crítica europeia com Indiana Jones, o que o levou a ler pela primeira vez Hergé. E, tal como milhões em todo o mundo, ficou "apanhado"..O "estilo Tintin"....Steven Spielberg é um "tintófilo" relativamente recente, mas o número de fãs da criação de Hergé é impossível de contar. Polémicas à parte, o autor belga nascido em Etterbeek, arredores de Bruxelas, a 22 de maio de 1907 inventou, literalmente, um estilo. A "linha clara" da banda desenhada: vinhetas "limpas", com cenário realista (é possível identificar os prédios de Bruxelas e até modelos dos automóveis utilizados nas histórias de Tintin, por exemplo), de desenhos caracterizados por um traço de tinta negra de espessura constante, é também chamada "o estilo Tintin". .O género define a escola belga de banda desenhada que marca indelevelmente a BD mundial, utilizada por autores como o referido Edgar P. Jacobs, bem como Bob de Moor (criador da personagem Barelli), Ted Benoît ou Roger Leloup (criador de Yoko Tsuno), só para dar mais três exemplos..Considerado o pai da banda desenhada europeia, Hergé foi ainda o primeiro autor francófono a utilizar o estilo americano da banda desenhada com balões. O seu nom de plume mais não é do que a aglomeração das iniciais do seu nome verdadeiro ditas da forma francesa em que o apelido vem primeiro: Georges Remi torna-se Remi George, ou RG, dito Hergé..... vive para sempre.A morte de Hergé, em 1983, foi também, de certa forma, a "morte" de Tintin. Ao contrário de muitos dos seus colegas de profissão, fez questão de deixar instruções específicas sobre como o seu legado literário poderia ser utilizado. Designadamente, uma proibição absoluta de que alguém desenhasse mais histórias com a personagem..Assim, a última aparição de Tintin numa aventura completa é de 1976, no álbum Tintin e os Pícaros. E mais não poderá haver. Mas na realidade....Em 1986, a Casterman publicou Tintin e a Alf-Art, álbum com os esboços da história em que Hergé trabalhava quando morreu. É uma história inacabada, mas que permite um vislumbre do que poderia ser o futuro de Tintin..E hoje, a assinalar o 90.º aniversário da personagem, haverá um "novo" álbum do aventureiro jornalista: uma versão do polémico Tintin no Congo, com colorização revista. O lançamento será acompanhado de debates transmitidos online acerca da importância da obra e do seu enquadramento histórico. .O livro não terá versão impressa, no entanto. Será lançado apenas em digital, uma opção que reflete as transformações que a indústria da banda desenhada, tal como tantas outras, atravessa. .Ou será algo mais profundo? Ainda quererão as novas gerações ler Tintin? Exemplos de que a popularidade da criação de Hergé está em declínio são muitos. Apenas dois: a versão colorida de Tintin no País dos Sovietes, finalmente publicada em 2016, vendeu apenas 300 mil exemplares, bem abaixo das expectativas; em novembro passado, uma tira de A Estrela Misteriosa, a tinta-da-china, com preço de licitação base de 170 mil euros não encontrou comprador. Isto num leilão que viu uma obra do igualmente mítico autor Moebius ser vendida por 1,2 milhões de euros, cinco vezes o valor da licitação base..Na nona arte, como em quase todas as outras, há momentos altos e outros menos bons. Tintin estará hoje num destes últimos, mas também isso será passageiro. Até porque ainda não está totalmente excluída a possibilidade de se concretizar a ideia de Peter Jackson vir a realizar a continuação de O Segredo do Unicórnio (agora com produção de Spielberg, numa inversão de papéis que ficou combinada no primeiro filme ainda em pré-produção). .Mas mesmo que o projeto não chegue a sair da gaveta, as nove décadas de viagens de Tintin, da Rússia comunista à América capitalista, dos cumes do Tibete aos picos dos Andes e à África colonial, do centro de Bruxelas ao fundo dos mares do Atlântico, continuarão a fazer-nos voar nas asas da imaginação. Parafraseando outra personagem famosa: até à Lua e mais além.