Tilda Swinton quer o silêncio e já adotou Apichatpong Weerasethakul

Conversa com a atriz mais cinéfila do cinema europeu. Tilda Swinton a promover <em>Memória</em>, de Apichatpong Weerasethakul, experiência sensorial existencialista. Em Cannes contou ao DN a sua relutância em ser vista como atriz.
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Entre o louro platinado e o ruivo. Ao vivo, o cabelo da escocesa Tilda Swinton é ainda mais impactante do que no cinema e, de perto, o seu rosto tem uma outra carga extra. Chamemos-lhe aura de criatura espacial. Um belíssimo alien que nos olha olhos nos olhos e que fala com um entusiasmo empolgante. Num encontro com alguns jornalistas acreditados no Festival de Cannes numa sala de reuniões de um hotel da Croisette, Tilda diz alto e em bom som que está feliz da vida com o resultado final de Memória, o novo filme de Apichatpong Weerasethakul, estreado esta semana em Portugal, a história de uma mulher a reviver memórias oníricas através de alguns estrondos que encontra na sua estadia na Colômbia. A ficção-científica no cinema deste cineasta tailandês é matéria para uma instalação de mistérios e processos sensoriais. Não se trata de uma aventura narrativa, mas sim uma experiência sobre uma força invisível que brota dos sonhos e de estados entre o real e a morte.

Tilda, sempre expansiva, acaba por nos confessar que hoje está particularmente feliz: Joe, como é conhecido Apichatpong, faz anos e é preciso celebrar essa data do seu cineasta protegido. É mais do que flagrante a sua admiração por este realizador. Depois de Bela Tarr e de Pedro Almodóvar, Tilda adotou outro cineasta que não filma na língua de Shakespeare. "Eu e Joe falámos sobre este filme há 17 anos e tudo se gerava a partir de uma ideia de ritmo e de sentido de deslocação. Para mim, aqui o meu trabalho está mais próximo da dança. Memória é um filme todo ele guiado segundo uma atmosfera de limbo. Essa era a camada principal na origem do projeto. Depois, passados uns anos, queríamos que também fosse um retrato de uma estrangeira. Por isso, era importante que o local fosse estranho tanto para mim como para ele...Mais tarde, quando ele esteve no Festival de Cinema de Bogotá percebeu que tinha de ser a Colômbia. Fui em seguida e concordei".

Para quem pensava que o carisma da atriz poderia levar a gramática de cinema do tailandês para uma eletricidade diferente talvez se engane. Memória é típico Apichatpong Weerasethakul: dormente, lento, penetrante. Tilda é um corpo que não é estranho a esta matéria de cinema. Deduzimos que haja uma cumplicidade na criação, não pode ser de outra maneira. "Depois desta experiência creio que fiquei uma atriz mais entregue à reação do que à criatividade, tal como a minha personagem, uma mulher que recebe vibrações, uma antena", afirma e insiste: "estou agora mais observadora e ouvinte, com inclinação para fazer menos barulho. Nesta altura, procuro um cinema com menos palavra. Durante as filmagens acreditava que este filme poderia fazer bem às almas que o vissem. Acredito tanto em Memória! Mas agora, depois da pandemia, estas imagens carregam consigo uma outra tensão, mas fará bem a certas pessoas que queiram entrar nesta pausa, que saibam ter paciência".

Tilda Swinton diz tudo isto com um sotaque britânico limpo e com uma pronunciação das palavras clara e distinta, quase como se estivesse a dar aulas de dicção. E é com alegria que afirma qual a grande dificuldade para si nesta aventura: "Foi complicado estar num filme que fala de insónia, logo eu que sou tão dorminhoca. Tive uma grande ligação com o Joe pois ambos amamos dormir, a natureza, cães e fogo. São os nossos 4 fetiches. Quando tive insónia foi terrível!".

Sobre a coleção dos cineastas que coleciona, Tilda não tem tabus: "Tenho sido extremamente abençoada, sobretudo em poder trabalhar com cineastas cuja obra conheço em profundidade. Trabalhar e começar uma relação, em especial com o Bela Tarr, o Almodóvar ou o Joe. Seja como for, também já decidi trabalhar com realizadores apenas porque gosto deles, mesmo que não tenham um passado. Com o Luca Guadagnino foi assim: conheci-o quando ele tinha 22 anos e nunca tinha feito nada. Tornámo-nos muito amigos e eu sabia que iria ser alguém. No geral, o mais importante são as relações humanas. Começa tudo nas relações, depois vem o projeto e só depois é que começamos a falar sobre o que lá vou fazer. Estou mais investida em criar cinema do que em representar, até fico embaraçada quando me chamam atriz, fico sempre com a sensação que estou a querer ser algo que nem estou muito interessada em ser". Pergunto se não tem mais alma de produtora e a resposta é taxativa: "Mas eu sou realmente produtora! Para mim, é algo prático. Se não representasse, estou certa que trabalharia no departamento de arte, tal como o meu filho. Mas chamem-me antes performer".

E esta "performer" volta a ser mágica em The Souvenir- Part 2, de Joanna Hogg, onde interpreta de novo a mãe snob de uma realizadora de cinema em formação. Foi outro dos filmes em Cannes com o seu rosto, neste caso envelhecido e, mais uma vez, a ser mãe de Honor Swinton-Byrne, precisamente a sua (talentosa) filha. Em Portugal chega brevemente aos clubes de vídeo das operadoras.

Já venceu a Palma de Ouro com O Tio Bonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores e cedo se tornou o cineasta tailandês mais venerado no circuito do cinema asiático mais autoral. Um autor que ao longo dos anos ganhou mediatismo com filmes que questionam noções de sono, transcendência espiritual e espírita. Apichatpong Weerasethakul, conhecido por Joe, é um caso único cuja liberdade provoca estados de transportação únicos. Para muitos, está no beco sem saída criativo, para outros é sempre revigorante na sua linguagem. Em Memória sai da primeira vez da Tailândia e traz fantasmas do seu imaginário para a paisagem colombiana. E traz também Tilda Swinton, uma Tilda esbranquiçada e em modo de recetora.

Ao lado da sala onde está Tilda, recebe um grupo de jornalistas acabados de sair do encontro com a atriz que não quer ser vista como atriz. Com um inglês tímido muito eficaz, Joe está mais seguro e confiante que das outras vezes e jura não se ter esquecido da sua passagem pelo Festival Curtas Vila do Conde. Começa por dizer que durante as filmagens na Colômbia nunca conseguiu dormir e começamos a pensar que esse efeito de insónia se reflete no filme que agora se estreou nas salas e que supostamente não vai chegar ao Home Cinema. Memória é talvez o seu filme que aproxima mais o sonho da morte. Será que ele concorda? "O nosso desejo em Memória era tratar a morte como um mero estado de sono e sonho. O filme acredita nessa ideia, eu não: a morte é o fim de tudo, mas Memória também projeta uma ideia de luz e daí sai precisamente a vida, que, por sua vez, é uma ilusão", responde. Mais tarde vai confessando que ao longo da rodagem filmou muito material que não ficou neste corte final. Em alguns dos momentos do filme sente-se, ainda assim, que nem tudo é harmonioso. Joe gosta precisamente desse sentido de abandono, é talvez o maior charme do filme e desses restos já nasceu uma exposição do cineasta: "baseava-se num plano da Tilda a dormir à noite e é de uma imensa beleza. Supostamente, esse seria o final do filme. Era o seu triunfo contra a falta de sono, mas o plano está mesmo bonito com toda a luz a mudar". A privação do sono sempre serve para alguma coisa artisticamente e é o próprio a concordar: "As insónias inspiram-me. Aliás, a noção de drama deixa-me acordado e surge esse desejo de fazer parar o nosso cérebro. Por isso, a cena em que Hernán dorme é muito importante, é como se ele estivesse a dizer à personagem de Tilda como consegue parar. E ao parar a narrativa também pára".

Para além das questões do sono (e este é um cineasta que ficou também famoso por admitir que é bom quando o seu público adormece nos seus filmes), outro dos fascínios de Joe é a questão das línguas. A escolha da Colômbia não foi inocente... o castelhano que vemos no filme tem algo de fétiche mas a vedeta do filme é o som, o seu efeito: "Gosto quando me dizem que tiveram medo do som deste filme! Mesmo quando sei a altura em que o bang se vai ouvir fico sempre com medo... Este filme pode assustar e ir de género para género mas ontem quando vi o filme no Palais de Cannes é que percebi que Memória pode ser uma viagem coletiva para uma plateia. Ganha muito em ser visto numa sala cheia. Ficamos em sintonia com a nossa respiração e respetiva noção de antecipação".

dnot@dn.pt

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