Theresa May dançou ao som dos ABBA no congresso dos conservadores, Boris Johnson usou (de forma muito breve) uma mesa do Palácio do Eliseu para descansar os pés. Mas nem uma nem o outro tiveram motivos para danças nem folguedos. O processo do Brexit derrubou os primeiros-ministros David Cameron, Theresa May e Boris Johnson não está a ter vida fácil..Impedido nesta segunda-feira de votar o acordo no Parlamento - por o speaker dos Comuns, John Bercow, ter considerado que o documento em causa era substancialmente a mesma moção apresentada no sábado -, o governo britânico vai apresentar nesta terça-feira diretamente um projeto de lei sobre o Brexit, que deverá ser debatido em segunda leitura e passar à fase das comissões no mesmo dia. E poderão surgir várias emendas, pelo que é duvidoso (ainda que não impossível) que o executivo de Boris Johnson consiga aprovar a legislação do Brexit no espaço de três dias durante esta semana..No entanto, a sucessão de derrotas do governo do ex-mayor de Londres pode ser a sua maior vitória: a saída do Reino Unido da UE no dia 31, caso os deputados falhem a aprovação de um acordo ou se a UE27 rejeitar mais um adiamento. Seria a saída sem acordo e, apesar das duras consequências que traria para o Reino Unido, Boris Johnson cumpriria o que tem prometido desde que foi escolhido pelos militantes do Partido Conservador seu líder e, por inerência, chefe do executivo. "É fazer ou morrer". "Prefiro morrer numa vala do que pedir o adiamento", foram frases que ficaram para a história. Resta saber como ficará o seu autor. Para já, é o primeiro-ministro com mais derrotas parlamentares e na justiça de uma assentada..Se a sua campanha pelo voto de saída da UE no referendo de 2016 foi um sucesso - ainda que com falsidades como a de que Londres envia 350 milhões de libras todas as semanas para Bruxelas - e a sua chegada ao poder também, Boris Johnson tem um currículo pouco invejável desde que iniciou funções no n.º 10 de Downing Street. No início de setembro perdeu a maioria parlamentar quando o deputado Phillip Lee passou para a bancada dos liberais democratas enquanto Johnson falava..No debate de emergência sobre o Brexit, os deputados votaram a favor do controlo da agenda parlamentar em desfavor do governo, de forma a impedir uma saída sem acordo. Entre os 328 deputados que votaram contra o governo, 21 são conservadores, o que levou à saída desse grupo. "Expulsaram-me do grupo parlamentar após 37 anos como deputado conservador. Votei contra o governo três vezes em 37 anos", disse Nicholas Soames, neto de Winston Churchill, não escondendo a mágoa pela forma como foi tratado em comparação ao primeiro-ministro ou ao atual líder da Câmara (ministro dos Assuntos Parlamentares) Jacob Rees-Mogg..Após esta derrota, Boris Johnson submeteu no dia seguinte um pedido de eleições antecipadas, mas a oposição, com receio de abrir caminho a uma saída sem acordo, rejeitou a proposta. No dia 9 de setembro, Boris Johnson volta a propor a antecipação das legislativas e, mais uma vez, a Câmara dos Comuns rejeita a moção..Seis dias depois, a Câmara dos Comuns aprova legislação que obriga o primeiro-ministro a pedir um adiamento do Brexit caso o Parlamento não tenha votado a favor da saída. Nesse caso, a Lei Benn prevê que o governante tenha de solicitar um adiamento da saída até 31 de janeiro de 2020 a Bruxelas..A Lei Benn teve um novo desenvolvimento neste sábado. No dia em que Boris Johnson levava à Câmara dos Comuns um novo acordo celebrado com a UE para aprovação dos deputados, o conservador Oliver Letwin apresentou uma emenda para suspender a votação até primeiro ser votada a legislação relacionada com o acordo - o contrário do que Boris Johnson pretendia. A emenda foi aprovada por 322 votos a favor e 306 contra..Na segunda-feira, mais um revés. À insistência do governo em levar o acordo a votação, o presidente da Câmara dos Comuns rejeitou tal pretensão. John Bercow alegou que nada de significativo mudou entre sábado e segunda-feira..A resposta não se fez esperar. O governo apresentou no final do dia a legislação conexa com o acordo de saída, dando as 110 páginas e outras 125 de notas explicativas para os deputados votarem..Fora de Westminster Boris Johnson também não recebeu notícias favoráveis. A pretensão de suspender o Parlamento durante cinco semanas, entre 9 de setembro e 14 de outubro, minando a possibilidade de os deputados poderem escrutinar o trabalho do executivo, foi considerada ilegal pelo Supremo Tribunal. "O tribunal deve concluir que a decisão de aconselhar a rainha a prorrogar o Parlamento foi ilegal porque teve o efeito de frustrar ou impedir a capacidade do Parlamento de desempenhar as suas funções constitucionais sem justificação razoável", disse a juíza Brenda Hale no dia 24 de setembro..Um legado de fracasso.Também o governo de Theresa May sofreu uma derrota no tribunal em novembro de 2016, quatro meses depois de chegar ao poder. A ativista Gina Miller interpôs uma ação em tribunal e os juízes deram provimento à ideia defendida pela empresária: "Não podem falar em assumir novamente o controlo e recuperar a soberania do Parlamento e ao mesmo tempo tentar ignorá-lo." O Parlamento ficou com a última palavra..Em junho de 2017, um erro de cálculo da governante: antecipou eleições com o objetivo de reforçar a maioria parlamentar para as negociações do Brexit, mas acabou por perder a maioria parlamentar. Com isso aliou-se na Câmara dos Comuns ao DUP, pequeno partido conservador da Irlanda do Norte..No ano seguinte, em julho, Theresa May apresenta o chamado plano de Chequers (a casa de campo do primeiro-ministro), que enfrenta enorme resistência e, por fim, com várias demissões, como a de Boris Johnson. Os defensores de um Brexit sem concessões viam no plano de Mayuma submissão a Bruxelas e um recuo na promessa feita pela primeira-ministra de que, após o dia 29 de março de 2019, o Reino Unido sairia do mercado único europeu. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de May, Boris Johnson, classificou a proposta de Chequers como uma intenção de a líder conservadora pôr "um colete suicida" à volta da Constituição britânica e "entregar o detonador a Bruxelas"..As vagas de demissões explicam-se também pela contestação orquestrada pelo European Research Group, liderado por Jacob Rees-Mogg, um grupo de deputados conservadores defensores de um hard Brexit ou mesmo de uma saída sem qualquer acordo..Em novembro, os líderes europeus chegam a acordo com o governo de Theresa May, mas logo no mês seguinte a primeira-ministra adia a votação parlamentar porque sabia que iria perder. Ainda em dezembro a sua liderança é posta em causa, quando os próprios conservadores põem a sua liderança em causa, mas a moção de censura entre os parlamentares tories é rejeitada (200 votos contra 117)..No dia 15 de janeiro faz-se história: o acordo do Brexit é derrotado por margem histórica, 432 contra 202. Os números não foram tão pesados, mas o acordo voltou a ser chumbado pela Câmara no dia 12 de março. No final do mês, sob imensa pressão e desgaste, May oferece a demissão em troca da aprovação do acordo, mas este volta a não passar. A data inicial do Brexit passa para 31 de outubro..Em maio, com o país a ter de realizar eleições europeias, conservadores e trabalhistas ensaiam negociações, mas sem qualquer avanço. Na última cartada, Theresa May aceita um novo referendo se o acordo for aprovado, mas a concessão não é aceite. Com o destino traçado, Theresa May anuncia a demissão no dia 24 de maio..Contas feitas, o Brexit foi um calvário para Theresa May e não está a ser melhor para Boris Johnson. Só que para a agora deputada era ponto de honra assumir o compromisso com o povo através de um acordo. O mesmo não se aplica ao atual primeiro-ministro - e principalmente ao seu assessor principal Dominic Cummings.