The Eddy - o vício de culto na Netflix

Damien Chazelle (La La Land) volta à música em The Eddy, minissérie de prestígio da Netflix. Uma carta de amor aos ambientes da cultura fumarenta dos clubes de jazz de Paris.
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Respeite-se o desplante: um jovem cineasta americano a querer fazer ficção televisiva em 16mm com laivos de nova Nouvelle Vague. Heresia? Mania das grandezas? Liberdade inconsciente? Talvez um pouco de tudo isso, mas Damien Chazelle, o menino de La La Land, em The Eddy pensou num formato inovador: homenagear o espírito do seu estilo de música preferido, o jazz, e filmar uma história em Paris de forma bilingue. Nesta série, os diálogos são literalmente em francês e em inglês e a linguagem principal é o ritmo jazzístico.

Elliot Udo (Andre Holland, um dos melhores atores de Moonlight, oscarizado filme de Barry Jenkins que precisa e literalmente roubou o Óscar de melhor filme a Chazelle em 2017) é um músico pianista de jazz com fama de recluso. A morte de um filho fez com que nunca mais voltasse a tocar e fugisse de Nova Iorque para abrir em Paris o tal The Eddy, clube de jazz que tem a sua banda como cabeça de cartaz. Mas a máfia da noite ataca e o clube é ameaçado por um esquema fraudulento de dinheiro falso capaz de causar a morte ao seu sócio principal.

Nestes 8 episódios que por vezes ultrapassam a duração de uma hora, Elliot tem de lidar com as ameaças do crime organizado, uma investigação policial hostil e o regresso da sua filha adolescente que prefere agora viver em Paris. Nota-se que Damien Chazelle filma tudo com um verdadeiro amor à música ao vivo. Em todos os episódios há pelo menos uma ou duas atuações ao vivo, todas elas captadas com uma "vibe" honesta e um respeito pela integralidade do "jam". A ideia é dar ao espetador a sensação de estar num concerto naquela sala fumarenta e meio "encafuada" de Paris, não se dispensando o barulho das pessoas e dos cubos de gelo nos copos.

Aliás, os dois primeiros episódios, realizados por Chazelle, raramente têm a câmara parada: estamos sempre em cima do palco, das personagens e aos encontrões com os clientes do clube. Ou seja, a ideia é estarmos a viver todos aqueles acontecimentos, um pouco como acontecia em Whiplash, a primeira longa do realizador, nem de propósito sobre um baterista de jazz em Nova Iorque. De algum modo, The Eddy ainda leva mais a fundo o conceito do som direto num objeto de entretenimento. E é aí, na necessidade deste projeto ser também "entretenimento", que se joga o grande desafio.

Por um lado, a intriga policial e de thriller com aspetos "bas-fond" parece forçada e encavalitada, mas, por outro, a aposta em não deixar fora de pé a complexidade de todas as personagens em órbita do clube, produz efeitos emocionais muito bem conseguidos. Temos a filha de Udo, excelente retrato de uma adolescente a passar para a dimensão da maioridade, a vocalista da banda, interpretada por Joana Kullig (a atriz de Cold War), muito mais do que um mero "interesse romântico" ou uma avô islâmica capaz de conferir uma possibilidade de cruzamento do jazz com a "world music" do Magrebe.

Longe da exuberância de La La Land, The Eddy vive de um ritmo bem mais interior e de uma dimensão realista oposta ao "colorido" da carta de amor a Los Angeles que era o filme que deu fama a Chazelle. Para já, no atual contexto da Netflix, está já a ganhar uma aura de objeto de culto, nos antípodas da devoção entusiástica de séries como The Last Dance ou Hollywood. O jazz puro e duro não é para massas, mas fala-se já na possibilidade de Andre Holland poder vir a ser uma cartada forte para melhor ator na próxima temporada dos prémios. The Eddy é a jóia de prestígio do catálogo da Netflix, não tendo sido por acaso que viu a sua estreia mundial na secção de séries da Berlinale.

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