Teste à democracia tunisina

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Ficou célebre a imagem de Habib Bourguiba na televisão a beber um sumo de laranja em pleno Ramadão e a explicar aos tunisinos que o Islão e a modernidade eram compatíveis. Mas o maior legado do pai da independência da Tunísia (até à década de 1950 um protetorado francês) foi a emancipação feminina, pioneira no mundo árabe, e que explica o papel das mulheres nos protestos que em 2011 fizeram cair o regime de Ben Ali (que se exilou), sucessor de Bourguiba desde 1987, mas claramente sem o carisma do primeiro presidente e muito prejudicado na imagem popular pelo crescente nepotismo. Foi assim na pequena Tunísia que começou a famosa Primavera Árabe, com consequências terríveis para os ditadores líbio, egípcio e iemenita, todos depostos, e no caso de Muammar Kadhafi até morto por uma multidão.

Hoje a Tunísia vai a votos, decidir sobre uma nova Constituição. Desde 2011, apesar de atentados terroristas e de assassínios políticos, a democracia tem mostrado grande resiliência no país, fruto de uma sociedade evoluída, orgulhosa de um passado que é islâmico, mas também berbere, romano e fenício (as ruínas de Cartago são vizinhas de Tunes), e que ambiciona ser aberta ao mundo. Em causa está agora o reforço dos poderes presidenciais, depois de há um ano Kais Saied, perante a paralisia de uma Assembleia sequestrada pelas rivalidades partidárias e muito dividida entre laicos e islamitas, ter demitido o primeiro-ministro, suspenso o Parlamento e assumido totalmente as rédeas do poder.

Constitucionalista de formação, Saied mostrou sempre aversão àqueles que usaram a religião como ideologia política e, nisso, inscreve-se na linha laica de Bourguiba e também até de Ben Ali, mas a nova Constituição não exclui totalmente o Islão do seu texto, como alguns esperavam. Contudo, em causa está, sobretudo, o reforço dos poderes presidenciais, que é apoiado por muitos tunisinos adeptos da democracia, mas cansados das disputas no Parlamento e de deputados suspeitos de corrupção e também por alguns saudosistas de Ben Ali, quando a estabilidade política trazia turistas em grande número e fortes investimentos europeus.

Tudo indica que o referendo terá votação favorável, mesmo que seja criticado por parecer mais um plebiscito a Saied. A favor da imagem do presidente está o ter nomeado Najla Bouden Romdhane para a chefia do governo, uma primeira-ministra pioneira no país e no mundo árabe. Bourguiba, que não chegou a dar esse passo, certamente teria aprovado, e Saied, cujos inimigos dizem querer ser um ditador, sabe que imitar o pai fundador lhe garante muita simpatia e pode ser decisivo neste teste popular à sua legitimidade.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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