"Tenho uma flor tatuada que simboliza o meu compromisso com a natureza"
É a passear no passadiço quase à altura da copa das árvores, nova atração do Parque de Serralves, que fico a saber que as credenciais nortenhas de Helena Freitas são sobretudo por via familiar, pois foi nascer a Famalicão em 1962, "durante as vindimas", porque viviam lá os avós maternos, e, apesar das muitas férias passadas no Minho (de onde eram também oriundos os outros avós), cresceu "essencialmente" em Coimbra. O "essencialmente" aqui é importante, pois se a vida familiar teve por base a cidade banhada pelo Mondego, na qual o pai estudava - e para onde foi também a mãe depois de se conhecerem (ela candidata à universidade e ele seu explicador de latim, em Braga) e se casarem - houve épocas, ainda criança, em que a professora catedrática da Universidade de Coimbra, desde janeiro também diretora do Parque de Serralves, viveu noutras cidades. E até bem longe, ao passar uns anos em Benguela e Silva Porto quando o pai, magistrado, foi colocado em Angola. "África ficou marcada em mim, e quando regressei, já como investigadora, senti algo especial, que quis simbolizar", conta, mostrando, entre risos, a pequena tatuagem no braço que de regresso a Portugal fez. Um símbolo africano e da relação de afeto a África, tal como, confessa, de novo entre risos, tem "uma flor também tatuada que representa o meu compromisso com a natureza".
A conversa pode já ter passado por paisagens tão remotas como Bijagós, arquipélago guineense que ambos conhecemos, ou a Gorongosa, onde Helena foi em missão científica e que pouco a pouco vê a fauna recuperar da destruição causada pelo conflito moçambicano da década de 80, entre Renamo e Frelimo. "Há elefantes com memória da guerra", sublinha. Mas se a floresta africana impressiona, também é impressionante o equilíbrio estético entre o que é construção humana e o que é fruto da natureza nestes oásis de sossego no meio do Porto: Casa de Serralves, Museu de Arte Contemporânea, Casa do Cinema Manoel de Oliveira e o parque propriamente dito, pelo qual estão salpicadas obras de arte. Converso ainda nas alturas com Helena um pouco sobre as origens do parque, projetado pelo arquiteto francês Jacques Gréber há um século, por encomenda do 2.º conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral. "É um espaço verde num espaço urbano, que se diferencia porque oferece espaço de usufruto, e são 18 hectares. Oferece uma vegetação ornamental muito bonita, muitas flores, muitas árvores de grande porte, autóctones, e não só. Sobretudo há um enorme respeito pela biodiversidade, a presença e o valor da água no espaço urbano. Nesse sentido, é um parque pedagogicamente ativo naquilo que deve ser uma cidade", diz Helena, que chama a atenção para a quinta ali perto, garantindo que a vaca que vejo é tudo menos ornamental, vivendo como vive qualquer animal numa quinta. E fico a saber que tudo o que se cultiva em Serralves é aproveitado, o que me faz interrogar se os tomates da salada no restaurante vêm mesmo destes 18 hectares, adquiridos pelo Estado em 1986 e geridos pela Fundação de Serralves desde 1989.
É bem rica a carreira académica de Helena, que se formou em Biologia em Coimbra e fez depois o doutoramento em Ecologia também por Coimbra, mas em colaboração com a Universidade de Bielefeld. E a estada na Alemanha, iniciada no outono de 1989, aconteceu num momento histórico, que faz questão de salientar quando lhe digo que habitualmente escrevo sobre política internacional. "Tinha chegado há 15 dias quando o Muro de Berlim caiu. Foi uma experiência forte, não só pelo acontecimento mas também pela relação com a família que me acolheu. Eles tinham um apartamentozinho que aluguei e que era contíguo à casa principal. Estava a tentar desenvolver o meu alemão, era muito jovem, e o contacto com eles foi muito importante. Ele é católico e ela protestante, e era interessante porque ao domingo íamos os três à missa. Aprendi muito na Alemanha. E digo família porque tiveram filhos enquanto eu lá estava e, passados tantos anos, até fui ao casamento de uma das filhas", conta.
Para o almoço, está à nossa espera Fernando Pereira, consultor de comunicação de Serralves e que foi quem agilizou este encontro com a diretora num dos dias em que ela ia ao Porto (continua a viver em Coimbra). O sistema no restaurante é buffet e é Helena quem me sugere que nas entradas, além das tais saladas com tomate provavelmente colhido no parque, há umas chamuças a não perder. Depois, como prato principal, apesar de haver mais opções, a escolha unânime na nossa mesa é para o farfalle de espinafres e salmão. Uma funcionária serve as bebidas à mesa, com Helena a destoar da preferência por água (está um dia quente no Porto) e a pedir um sumo de laranja. E a conversa é finalmente retomada, agora sobre o pós-doutoramento feito na Califórnia, na década de 90, os chamados "anos Clinton". "Regressada da Alemanha e já doutorada, consegui ao fim de algum tempo equilibrar as aulas e pedi uma dispensa de serviço, concorrendo a uma bolsa em Stanford para estudar alterações globais, nomeadamente o efeito do carbono em climas mediterrânicos. Não perceberam bem, achavam que Stanford não tinha mérito nessa área e que a minha área era deslocada dessa. Acabei por contestar e a minha carta até foi utilizada pelo Mariano Gago, então ministro. Acabei por ir", relembra a antiga vice-reitora da Universidade de Coimbra, que tem fama de ser não só fiel às suas ideias como combativa.
Conta que a experiência nos Estados Unidos foi muito positiva: "Vivia em Palo Alto, num momento em que comecei a ter o primeiro e-mail, em que surgiram as redes sociais - o LinkedIn foi a minha primeira. Sou muito ávida de conhecimento e de diálogos de diferentes culturas, gosto de aprender, e ali tive oportunidade flagrante de ter um universo de conhecimentos."
Ligeira pausa para a diretora do Parque de Serralves atender uma chamada. Explica-me que é a filha, de 21 anos, estudante de Medicina, que neste dia tem um exame. Pelas minhas contas, a maternidade aconteceu depois do regresso de Stanford e na época, entre 1999 e 2002, em que foi presidente da Liga para a Proteção da Natureza. Helena confirma e, sabendo que participei, tal como ela, em maio numa iniciativa da LPN, em que conheci a sede em Lisboa, um casarão em Benfica, diz-me que o restauro aconteceu nesse seu mandato. E continua a ser sócia daquela que foi a pioneira das organizações ambientalistas, "fundada em 1948 e que tem a génese na academia, no professor Baeta Neves, e nasceu na sequência de um movimento contra a construção na Arrábida".
Hoje são sobretudo as alterações climáticas que estão no centro das preocupações dos ambientalistas e pergunto à antiga diretora do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra (2004 a 2012) se a atual guerra na Ucrânia, com sanções à Rússia e recusa de compra de gás natural por razões políticas, não vai resultar num aumento do consumo de combustíveis fósseis ainda mais poluentes. Ela comenta que, em especial "o uso do carvão, é um risco e tudo dependerá do que vai acontecer nos próximos meses neste embate. As renováveis não conseguem, de momento, dar resposta. Mas podemos conseguir uma maior parcimónia na forma como usamos os recursos e ter investimento tecnológico maior. Há condições para isso, mas não é fácil, é preciso sintonia. De qualquer forma, penso que no final deste ano as emissões de carbono deverão ter aumentado, só espero que esse retrocesso seja temporário".
Comento que há umas semanas conversei com outro reputado defensor da natureza, o professor Filipe Duarte Santos, sobre soluções para contrariar a excessiva carbonização do planeta e que, embora considerando que em Portugal a questão da energia nuclear estava encerrada por oposição da sociedade, o facto de outros países a usarem acabava por ajudar a haver menos emissões no planeta. Era um físico nuclear a falar, acrescento, antes de perguntar à bióloga o que pensa do nuclear, tão popular nalguns países, como França, mas detestado noutros, como a Alemanha, que, mesmo em risco de não ter gás no inverno, manteve a decisão de encerrar as últimas três centrais. "Até admito que algumas economias emergentes que usaram de facto muito as emissões de combustíveis fósseis, como a China ou a Índia, se tivessem feito a opção mista de desenvolver mais o nuclear, eventualmente teriam tido menos impacto. Por outro lado, o risco subjacente a esse processo tornava a coisa mais complexa. Nunca estive inclinada a defender essa opção nuclear, nunca, porque isso nos colocava na mão de uma parceria internacional de longo prazo que inviabilizaria opções mais promissoras. Acho que é mais inteligente continuar a apostar na maior eficiência e na diversificação, até conseguirmos a solução que é completamente descarbonizada - isso acontecerá inevitavelmente, o problema é o tempo que demora", responde.
Com a ajuda do verde que nos rodeia, o calor é grande mas suportável. Mas as vagas de calor no Sul da Europa não deixam de preocupar Helena, também por causa do risco acrescido de fogos: "A equação é cada vez mais difícil, porque temos um cenário climático que propicia episódios destes. Ondas de calor são cada vez mais frequentes, mas também há cada vez mais informação disponível, e isso, sim, é algo que podemos usar melhor: recorrer mais à comunidade científica para a antecipação de situações mais gravosas. Temos cada vez mais capacidade a esse nível, há ferramentas e modelos que nos permitem atuar muito mais preventivamente, porque a agenda que Portugal precisa é tão complexa que temos de continuar a apostar no ordenamento da floresta. E tem de passar pela questão do cadastro, sobretudo a norte do Tejo, onde há os problemas maiores de fragmentação da propriedade - nem 20% da floresta está cadastrada. O processo do cadastramento, que eu tenho o gosto de ter iniciado através da unidade de missão e do programa de coesão territorial, há cinco anos, ainda está muito aquém do que o país precisa. Precisamos do cadastro, não podemos não saber quem são os proprietários de 30% da floresta, é preciso entendimento político para que isto se resolva de uma vez por todas. Temos de divergir os incentivos à floresta menos resiliente para uma floresta mais resiliente, e isso implica trazer espécies autóctones, como os carvalhos, que podem fazer um papel mais ativo. Temos a própria paisagem, que tem de ser mais diversificada, temos os sistemas agroflorestais e podemos trazer mais agricultura para o espaço florestal. Temos de acabar com esta lógica da monocultura. O problema é exatamente esse: atuar na prevenção agora é cada vez mais difícil, sobretudo no Centro do país, onde temos uma floresta de eucalipto, com algum pinheiro, e que está a perder valor económico. São monoculturas, há uma enorme densidade e cria condições para os incêndios. Fazer a regeneração desta floresta é um processo moroso." E acrescenta: "Isto não passa só pelo poder político, nós temos de encontrar um valor para a floresta e para o espaço rural, valorizar os territórios. É normal que, não havendo outro valor, as pessoas usem o que é mais fácil. E se o que há no viveiro e no vizinho do lado é o eucalipto, é aí que as pessoas investem. Porque raio hão de investir em carvalho, que demora 40 anos a crescer? E os serviços ambientais têm de passar a entrar na equação de valor. Eu sei que é exigente para o Estado, sobretudo para um Estado descapitalizado. Não posso pedir isso às autarquias, que não têm capital humano para isso. O que fizemos foi retirar aos territórios a capacidade de pensar. Onde é que estão os técnicos? Em Lisboa. Todos os serviços de extensão no mundo rural desapareceram. É muito complicado."
Aproveitando a referência à coordenação da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, que o primeiro-ministro, António Costa, lhe confiou em 2016, procuro saber até que ponto a política cativa Helena, que foi eleita em 2015 deputada por Coimbra como cabeça de lista do PS e quando saiu do governo - tinha um cargo equiparado a subsecretária de Estado - chegou a ser especulado que teria sido em rutura, por acontecer depois do trágico incêndio de Pedrógão, em meados de junho de 2017, que matou mais de 60 pessoas. "A demissão foi cerca de uma semana antes, a 8", esclarece, "mas, com tudo o que aconteceu, foi só aceite depois de Pedrógão". Não quer desenvolver mais o tema, esclarece apenas que se identifica com a social-democracia, que nunca chegou a ser filiada no PS e que aquilo que a motiva é "o compromisso com a causa pública".
Fico a saber que Helena vai regressar a Coimbra no mesmo comboio Alfa que eu, para ela apenas uma hora de viagem, o que facilita a conjugação entre o trabalho no Departamento de Botânica da universidade e esta missão em Serralves, que, aliás, já assumia antes da formalização, em janeiro. Fernando diz que vai chamar um táxi para nos levar à estação das Devesas, em Gaia, mais a jeito do que a de Campanhã, e assim ganhamos uns minutos, enquanto terminamos o almoço com fruta e doces. Falemos de plantas, desafio: "Tenho paixão pelas plantas, pela função que desempenham na vida em geral. Desde logo a semente, o embrião mais notável da terra. Acho extraordinário a semente escolher o momento em que vai germinar. É absolutamente crítico porque a planta não tem mobilidade, então o embrião, quando nasce, tem de escolher bem o momento e o local. O momento porque na fase mais frágil de crescimento tem de ser favorável e o local porque lhe dá as condições para sobreviver. As espécies vegetais que existem venceram no processo de evolução porque tiveram o discernimento biológico para escolher esse momento e local e que tem a combinação de outras formas de vida, nomeadamente fungos. É isso que me fascina nas plantas: a forma como conquistam a terra, desde logo do seu metabolismo de obtenção de energia. Ao contrário de nós, que andamos à procura de alimento, as plantas resolveram isso com eficácia extraordinária, através da água e da luz."
Curioso, pergunto qual a planta que mais a fascina. "Até chorei a primeira vez que a vi, é a Welwitschia mirabilis, que só existe no deserto de Angola e da Namíbia. É um dinossauro do mundo das plantas. A existência dela é uma perplexidade do ponto de vista da biologia."
Está quase na hora do comboio. Última questão. Como é a diretora do Parque de Serralves enquanto sua visitante? "Faz parte há muito das minhas rotinas no Porto. Tenho um enorme respeito pelo trabalho que faz e o privilégio de a conhecer um bocadinho melhor faz-me ter ainda mais respeito, porque desempenha um papel muito relevante na cultura, na promoção da arquitetura e da cultura de fazer bem e sempre melhor. Há uma vontade cada vez maior de abrir ao público em geral e tem uma programação educativa e científica muito relevante. Serralves vai muito além do horizonte do Porto e é um privilégio poder contribuir com a minha equipa do parque. A administração mostrou-me esse gosto de que o parque fosse o que sempre foi, um elemento igual na dinâmica da própria fundação. Para mim é uma oportunidade enorme continuar a fazer o que sempre fiz, agora num espaço mais reconhecido e onde é possível fazer ainda mais. A minha agenda é a agenda da natureza, do ambiente, da sustentabilidade, e também da inclusão, da justiça e da equidade, e isso são valores que cada vez mais convergem."
leonidio.ferreira@dn.pt