Tempos de espera
O tempo de espera para o atendimento de doentes urgentes no Hospital Beatriz Ângelo em Loures era ontem, quinta-feira, de 20 horas. No Amadora-Sintra e no Santa Maria chegava às 13 horas. Esta informação podia ser lida às 16 horas desse mesmo dia de ontem a que se referem os tempos de espera no site da RTP, e presumivelmente em muitos outras páginas noticiosas online do país. Lendo os jornais em papel, no entanto, os números eram diferentes. Na edição em papel do Público de ontem, e é apenas um exemplo porque é o que está à minha frente, o tempo de espera de um doente urgente no Santa Maria tinha começado por ser de dez horas, mas tinha baixado para menos de cinco horas, especifica o jornal, "ao fim da tarde". Só que esse fim de tarde era da tarde de terça-feira. De há dois dias.
414 anos depois, não há diferença significativa nos tempos que separam a recolha da notícia, a sua escrita, a sua publicação e o dia em que é lida pelo leitor, entre o que é consensualmente o primeiro jornal do mundo impresso em tipografia, o Relation publicado em Estrasburgo em 1609 e um jornal em papel nos dias de hoje. A recolha da notícia pode ser mais rápida com o telefone e a internet, e os processos de paginação e impressão podem ser bastante mais rápidos, mas há um intervalo de tempo inultrapassável entre a impressão tipográfica da notícia do jornal em papel e a sua chegada aos olhos do leitor. Aquilo que este lê num jornal é, inevitavelmente, a notícia de ontem. Ou, neste caso dos tempos de espera, de anteontem.
E quem diz tempos de espera diz qualquer outra notícia publicada. As notícias do jornal são necessariamente pouco novas, e só eram "novas" no sentido arcaico de "notícia" dos jornais antigos, porque eram o único meio de comunicar ao público em geral, isolado geograficamente nas suas aldeias, vilas e cidades e distante dos acontecimentos relatados, o que de "novo" se passava. Quando não havia nem internet nem redes sociais, quando não havia canais de televisão noticiosos 24 horas por dia, e mesmo quando já havia rádio mas os "noticiários" eram dispersos no tempo e reduzidos a títulos e narrativas impessoais, qualquer acontecimento ou qualquer rumor era "notícia".
Pegando agora num Diário de Notícias, este de 1865, tinham direito a 1.ª página: uma informação útil, precursora da lista das Farmácias de Serviço, que "o camarista e ajudante de campo que está de serviço a sua majestade el-rei é o sr. conde de Campanhã", a informação política de que "S. Exª o sr. ministro da marinha" tinha apresentado "hontem" quatro propostas de lei (uma delas a contracção de um empréstimo de 60 contos para pagar vencimentos de funcionários públicos), a especulação assumida e sem indicação de fontes credíveis ("ouvimos que vai ser reformada a escola normal portuense"), e notícias de faca e alguidar que servem para mostrar que por muito que mudem as tecnologias de informação a substância do país real, em século e meio, pouco mudou. Entre "uma pobre criada de servir que appareceu louca na rua das Necessidades", o de "um cidadão que a polícia prendeu por ter a língua comprida" (?) e o de "um merceeiro que quiz assassinar um padeiro", além do mais desenvolvido e pormenorizado relato do assassinato com três facadas no peito do caixeiro António Lourenço que entrou num botequim às três e um quarto da noite para tomar um café tendo-se dirigido a ele "dois indivíduos dizendo-lhe "paga um café?" ao que ele tornou "Não pago café a ninguém", e nisto correram para ele e esfaquearam-no", basta abrir o único jornal que em Portugal, para desprezo das elites, ainda noticia estas misérias do mundo real, para se perceber que não só o teor das notícias não mudou como não mudou o interesse do público por essas curiosidades do mundo real. A única falha a apontar ao jornalismo de há século e meio no Diário de Notícias é a não explicação da intrigante notícia sobre a prisão do indivíduo por ter a língua comprida. Nos dias de hoje, teria direito a uma reportagem, a um eventual texto de opinião sobre a discriminação a que os indivíduos de língua comprida são sujeitos pelas autoridades policiais e, porque entretanto apareceu essa inovação tecnológica, a uma fotografia do dito indivíduo com a língua de fora.
O desenvolvimento de uma notícia, a contextualização, o comentário e a análise são hoje a mais-valia do jornalismo impresso. Sem dúvida que o "indivíduo da língua comprida" seria notícia nas televisões, e até é possível que competissem para a primeira entrevista, mas quem estivesse interessado em aprofundar o mistério e a perseguição às línguas compridas teria de recorrer aos jornais. Tanto na edição em papel como nas edições online, não há redes sociais, twitters ou instagrams que substituam a profundidade e o tempo de leitura e absorção dada pelos jornais, pelos jornalistas que passam horas a investigar um assunto, e pelas colunas de opinião escritas por autores com competência e conhecimento dos assuntos.
Os jornais já não são, nem vivem, das edições em papel. Nos últimos 20 anos a revolução tecnológica obrigou os maiores títulos da imprensa mundial, e também a portuguesa, a mudar para o ecrã do computador, do telemóvel, ou do tablet. Mas o jornal que os leitores, assinantes ou não, têm no ecrã é feito pelos mesmos jornalistas e oferece as mesmas garantias de rigor e qualidade que o que é impresso. O declínio e desaparecimento dos jornais que não fizeram a tempo, ou não conseguiram fazer, essa transmutação, é preocupante para a qualidade da informação e saúde das democracias. Nos Estados Unidos, onde nasceu o conceito de "quarto poder" e a imprensa é orgulhosamente independente e escrutinadora do poder, entre 2004 e 2018 desapareceram 1800 jornais. O número de jornalistas nesse período diminui um quarto. Entre os jornais que se adaptaram, e com destaque para os maiores, os números são esmagadores. Esta semana o The New York Times anunciou ter atingido a meta de 10 milhões de assinantes, dos quais apenas 700 mil da versão impressa. Percorrendo os grandes jornais do mundo, os resultados são proporcionalmente idênticos. Quem não se adaptou ao online, quem não investiu nas novas tecnologias e procurou chegar aos leitores de uma maneira moderna e rápida mas oferecendo as mesmas garantias de rigor, independência e credibilidade conquistadas pelos títulos em papel, está condenado a desaparecer.
Uma coisa, no entanto, não muda. Qualquer que seja o meio - o papel ou o ecrã - nenhum jornal vive sem jornalistas que investiguem, sem repórteres que saiam para a rua, sem editores que garantam a fidelidade da informação de que eram mesmo três e um quarto em ponto da noite quando António Lourenço foi assassinado num botequim do Bairro Alto. Há cento e cinquenta e nove anos, como hoje, é esse o rigor que procuram os jornalistas que fazem este jornal. Que querem fazer este jornal.
Director do Diário de Notícias