"Temos uma capacidade de sobreviver às crises que vem desde Alcácer Quibir"
Está agora a comemorar meio século de carreira literária, afinal lançou o seu primeiro livro em 1972, mas desse ano lembra-se mais de publicar A Noção de Poema ou do nascimento da primeira filha?
Foi o ano em que lancei o livro, em que me casei e em que nasceu a minha filha. Portanto, foi um ano de muitas mudanças pessoais porque, também, estava já no fim do curso, a guardar apenas duas cadeiras para adiar a entrada para a tropa, e ia começar a trabalhar, primeiro uns dois meses na Vida Mundial que não me convenceram a seguir o jornalismo, e só depois a dar aulas na Escola Industrial Machado de Castro onde fiquei cinco anos, antes de entrar para o ensino universitário. Foi também em 1972 que foi autorizada, com o "liberalismo" marcelista, a criação da Associação Portuguesa de Escritores. Eu frequentava o Monte Carlo e dava-me com os escritores que por lá andavam, sobretudo o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira e o Augusto Abelaira. Tendo já um livro publicado, o Alexandre Babo convidou-me para ser o mais novo membro da lista que iria dirigir a Associação. Ao mesmo tempo havia uma forte movimentação política e cultural em Lisboa: eu colaborava desde 1969 em O Tempo e o Modo que era uma revista onde estavam todos os movimentos da extrema-esquerda da altura; mas isso não impediu que tivesse entrado na Associação Portuguesa de Escritores que era mais ou menos dominada pelo Partido Comunista. Nada disto, como é evidente, era público, e como O Tempo e o Modo começava a entrar numa linha radical que não me atraía, troquei-o por essa atividade associativa que tinha um caráter mais cultural do que militante.
Estamos a falar de um jovem de 23 anos que se lança na carreira literária, que casa, que tem a primeira filha nessa altura. Para um jovem dessa idade - Portugal combatia nas colónias africanas - havia a possibilidade de ter de ir para África quando acabasse o curso. Já tinha acabado também a ilusão da Primavera Marcelista?
Nunca tive essa ilusão porque, quando Marcelo Caetano subiu ao poder, pouco antes do 5 de Outubro em que todos os republicanos históricos iam comemorar a data no Alto de São João, muitos estudantes quiseram manifestar-se, depois dos discursos e da coroa de flores da praxe. Claro que houve imediatamente uma carga da polícia, e foi a demonstração de que a repressão iria continuar. Foi também uma altura em que o Partido Comunista começou a ser muito violentamente reprimido nas associações de estudantes e tive também amigos de O Tempo e o Modo que foram presos. A única e ligeira mudança deu-se com as eleições de 1969 em que participei, mas mesmo nessas eleições...
Quando diz que participou, como é que foi essa participação?
Assistindo aos comícios, sobretudo do MDP-CDE, embora também tivesse estado nos da CEUD em que discursaram o Ruy Belo e a Sophia de Melo Breyner, mas mal as eleições terminaram as sedes desses movimentos foram fechadas. Ainda me lembro do dia em que a polícia foi fechar a sede do MDP que era na esquina do Campo Pequeno com a Avenida da República e de estar lá o Ary dos Santos heroicamente a resistir e a dizer "Isto ainda é o chão sagrado da liberdade!", pouco antes de terem fechado as portas. Mas já não havia muitas ilusões sobre o fim do regime. Eu tinha muitos amigos que estavam na tropa e um deles, colocado nas informações do exército, ia-me dando notícias do que se estava a passar na Guiné - as derrotas e os grandes problemas que se avizinhavam. Portanto, eu não tinha propriamente ilusões de que a situação não iria demorar muito até chegar ao fim, de uma maneira ou de outra. Na altura até receávamos mais de que fosse para a extrema-direita, devido ao que se tinha passado no 16 de março de 1974 com a prisão dos oficiais spinolistas, mas uma mudança qualquer estaria a aproximar-se.
Recorda-se de onde estava no 25 de Abril?
Tinha passado a noite em casa do José António Pinto Ribeiro com outros amigos, entre eles o Alexandre Pomar que chamou a atenção para algo que se iria passar, mas ninguém o levou a sério. Saímos eram para aí duas e meia e fui calmamente para casa e só às sete da manhã é que os amigos ligaram a dizer o que estava a acontecer.
Enquanto jovem casal com uma filha têm logo a noção de que vão viver num Portugal diferente? Têm logo essa confiança?
Essa ideia foi imediata. Eu tinha ido à Baixa, ainda decorria o cerco do Carmo, e já estavam a ser distribuídos jornais clandestinos - que já não eram - e, portanto, aquele clima de liberdade mostrou-me logo que era irreversível, o que o 1.º de maio só confirmou. Mas ver a multidão na rua, sem medo, ainda o Carmo não tinha caído, fez-me perceber que era uma mudança completa e pensei que não haveria retrocesso possível.
Na sua carreira de poeta, de escritor, é um momento de viragem ou a carreira fez-se sem que esse momento fosse marcante?
Não foi propriamente de viragem porque é muito difícil nós mudarmos a maneira como escrevemos de um dia para o outro. Já tinha uma linguagem definida e ainda nesse abril de 1974 tinha saído um livro, As inumeráveis águas. Claro que houve algumas mudanças naquilo que escrevi depois disso, talvez tenha cedido um bocado a uma certa viragem "surrealista".
O entusiasmo revolucionário não afetou a forma como escrevia?
Não.
Ou seja, o que era o seu estilo, manteve-se?
Sim. Onde, evidentemente, houve reflexos foi na prosa. Publiquei um primeiro romance chamado Plâncton e, aí estão muitas memórias do tempo da faculdade nos anos 60. É talvez na prosa que essas lembranças do tempo da ditadura estão mais presentes. Depois, na poesia comecei ao longo dos anos a escrever poemas sobre esse período, mas sem qualquer intenção militante.
O poeta não sentia a diferença entre um tempo em que sabia que podia ser censurado e o tempo em que sabe que há uma liberdade diferente ou no processo intelectual isso não foi assim tão notório?
Acho que não. Aquilo que nós temos para dizer precisa de tempo para encontrar o tom certo. Portanto, continuei o meu percurso, mas tratando às vezes de temas sobre os quais, antes do 25 de Abril, não seria possível tratar. Por exemplo, falar da lembrança do que era a minha aldeia no tempo dessa ditadura, da miséria, da Legião portuguesa, do desejo de liberdade. Fiz poemas sobre isso, também sobre o 25 de Abril, mas mais desse ponto de vista testemunhal, sem pretender qualquer aspeto de denúncia que seria anacrónica. Até porque a minha geração foi uma geração que se afastou da poesia neorrealista - a tal poesia de combate - porque achávamos que estava esgotada e era preciso falar de outras coisas com outra linguagem. Não era depois do 25 de Abril que ia voltar a isso.
Falou da aldeia onde nasceu, a Mexilhoeira Grande. Sei que tem lá casa, onde passa muito tempo. Sente-se mais lisboeta ou mais algarvio?
Sinto-me mais algarvio porque em Lisboa me sinto um pouco fora do meu espaço, não direi exilado pois é a minha cidade, mas o meu lugar é de facto no Algarve. E Lisboa tem uma rival: eu faço parte de uma geração para a qual Paris era o centro do mundo. Fui muito cedo a Paris, com o Luís Miguel Cintra, colega de turma no Liceu Camões, depois de termos passado o quinto ano (acho que hoje corresponde ao nono), passei lá um mês e depois voltei regularmente, portanto nunca perdi esse contacto e acho que conheço melhor Paris do que Lisboa. Paris é uma cidade onde se andam quilómetros a pé e se descobre a cada instante coisas novas e diferentes.
Quando é que esteve também colocado na embaixada em Paris?
Foi de 1997 a 2004.
Também tinha tido antes uma experiência de vida em Berna, na Suíça alemã, o que é um mundo completamente diferente...
Completamente diferente. É um mundo em que não é fácil o convívio porque é uma sociedade muito fechada, mas conseguimos ter amigos, alguns suíços, mas também estrangeiros que lá viviam, que ainda hoje se mantêm.
Fala alemão?
Não.
Portanto havia também a barreira da língua?
E ainda por cima era o suíço alemão, nem me teria servido de nada aprender essa língua que era minoritária, mas conseguia fazer-me entender porque muita gente falava francês, uma das línguas nacionais. E essa estadia serviu-me para escrever a tese de doutoramento e, mais tarde, o romance O café de Lenine.
Falou-me de Paris como a sua referência. Isso aplica-se também à cultura francesa - escritores, música, etc.? É a sua maior influência quando pensa numa cultura estrangeira?
É a primeira e grande referência, embora tenha vindo depois a poesia anglo-americana, a alemã (em tradução, claro) e só depois a de língua espanhola, embora o Lorca tenha sido uma leitura de adolescência.
Tem figuras de referência francesas na poesia e na literatura?
Um dos poetas mais importantes para mim quando comecei a encontrar a minha linguagem foi Saint-John Perse e depois, claro, os modernos do século XIX: Baudelaire, Rimbaud. Mallarmé. Hoje continuo a voltar a esses poetas, alguns mais recentes, contemporâneos, mas digamos que a poesia francesa a partir dos anos 50, 60, me acompanha menos, talvez por ser demasiado formalista para o meu gosto.
O mundo anglo-saxónico atrai-o ou sobretudo tem algumas figuras literárias que o atraem?
São mais as figuras literárias. Nos anos 60 li muito a geração beat, do Kerouac ao Allen Ginsberg. Quando estive em Paris em 1965 ainda copiei no original aquele poema célebre do Ginsberg, o Uivo, porque eles não chegavam cá. Depois, evidentemente, descobri o T. S. Eliot, o Ezra Pound, aquela geração dos imagistas, o que foi muito importante porque me ensinou que na minha poesia o mais relevante é a imagem, o ver e o dar a ver. Não escrevo, portanto, uma poesia que jogue demasiado em efeitos de língua, embora isso também aconteça. O Camilo Pessanha, por exemplo, foi um poeta muito importante na minha aprendizagem. Essa poesia anglo-americana deu-me o gosto pelo verso longo, que já tinha lido no Álvaro de Campos, mas foi neles que eu encontrei as grandes possibilidades de desenvolvimento dos temas da poesia que me interessavam. Um poeta que foi fundamental foi o americano John Ashberry e também a relação com a pintura que está no grande poema dele, Auto-Retrato num Espelho Convexo. Enfim, toda essa fase de leituras foi importante para encontrar a minha própria linguagem.
Tem traduzido também alguns desses poetas?
Do inglês traduzi a Emily Dickinson, mas o meu trabalho incide sobretudo em poetas e autores das línguas francesa e espanhola.
Como é traduzir poesia, é mais difícil do que traduzir prosa?
Bom, para mim talvez seja mais fácil a poesia do que a prosa. Traduzir poesia é, no fundo, passar de uma língua para outra poeticamente. Não é uma tradução literal, mas sim um trabalho sobre a língua daqueles poetas que estou a traduzir para que esses poemas possam ser ouvidos como poemas na minha língua.
Ou seja, é mais criativo?
É um trabalho mais criativo. Voltando a Emily Dickinson, que é uma poesia quase elíptica, muito difícil, para transpor aquela forma poética em português precisa de um grande trabalho.
Enquanto a prosa tem de ser uma tradução no sentido mesmo literal?
Também não diria que seja literal, o que é preciso é que o texto seja lido sem que encontremos obstáculos que nos façam pensar que isto é uma tradução. Eu traduzi sobretudo textos de teatro que, quando são autores dos séculos XVII ou XVIII, permitem a mesma criatividade de quando estou a traduzir poesia. Traduzir dramaturgos contemporâneos é mais complicado porque eles jogam com uma língua que às vezes vem da oralidade e de contextos sociais muito diferentes do nosso, e é preciso estar muito familiarizado com esses sentidos da língua oral que, para quem está de fora e não tem o convívio muito próximo com essa língua, não são muito percetíveis. É um investimento que, claro, é sempre interessante, mas não me atrai muito.
Se voltarmos um pouco a 1972 estamos a falar de um Portugal sob ditadura, estamos a falar do mundo da Guerra Fria. Quando olha hoje, 50 anos depois - estamos a ter esta conversa numa altura em que há uma guerra que envolve a Rússia - é pessimista em relação à forma como o mundo evoluiu?
Não tenho grandes ilusões quanto a vivermos em paz, por muito que o desejemos. E ao falar da Rússia lembro-me de quando fui ao festival de Avignon em 1968, com o Jorge Silva Melo - um grande amigo que perdemos agora -, o Luís Miguel Cintra, a Eduarda Dionísio, me tiraram uma fotografia em Nice em que estou a ler um jornal que noticia a invasão soviética da Checoslováquia, pondo fim a um liberalismo que despertou alguma esperança. Portanto, percebi logo nessa altura que não devemos confiar nos velhos impérios, mesmo que a em determinada altura tivesse havido uma aproximação ao Ocidente com Gorbachev. É evidente que esta invasão da Ucrânia é um atentado à liberdade dos povos viverem de modo independente, embora tenha havido do lado de cá uma total inabilidade na gestão da relação com o espírito imperial que se pensava incapaz de agir. Mas bastava pensar no que aconteceu na Síria para sabermos que o respeito pela vida humana é algo que não faz parte de um mundo que governa pela força.
Acha que há o lado de cá e o de lá?
Continua a haver. Isso não se perde de um dia para o outro. Os processos históricos demoram às vezes séculos.
Está a falar mesmo de uma civilização europeia ocidental versus esta Rússia histórica ou até, se calhar, a própria China? Acha que a civilização ocidental tem valores diferentes?
Sim, porque são valores que já vêm da Revolução Francesa e, portanto, já têm uns séculos de implantação. Esses países que viveram sempre debaixo de autocracias - no caso da Rússia foi o czarismo, depois o regime soviético - esse espírito não desaparece de um dia para o outro, embora tenha surgido, depois da queda do Muro de Berlim, uma classe mais liberal, mais classe média, além de uma classe intelectual que deseja a liberdade. O que está a acontecer agora mostra que eles vão ser reprimidos e que, possivelmente, não vai ser fácil voltarem a manifestar-se sem repressão, e a ter esse contacto com o mundo que tinham antes. Eu conheço alguns poetas russos e estou a imaginar o que eles estarão a sentir...
Acha que a Rússia perdeu uma oportunidade depois do fim do comunismo de se aproximar do Ocidente e de partilhar os seus valores?
Acho que sim, o mundo não se vai esquecer disto tão cedo, sobretudo quando vemos a destruição que as cidades na Ucrânia estão a sofrer e o desprezo total pelo que é a liberdade e a independência dos povos. Mas isto não me espanta muito, porque aquilo que foi feito na Síria foi igual ou pior com a destruição de escolas, de hospitais, a razia de cidades milenares como Alepo, o massacre de crianças e mulheres. E, de facto, os Estados Unidos que, apesar de tudo, podiam contrabalançar esse poder imperial, também passaram um momento complicado de crise, com a retirada do Afeganistão que ainda foi pior para essa imagem de gestão do seu poder de equilíbrio de forças no mundo. Portanto, estamos numa situação complicada e não estou a ver que seja possível sair disto muito rapidamente, embora seja essencial acabar com a perda de vidas civis.
Quando olha para esta América de Joe Biden e, recentemente, a América que foi a de Donald Trump, está mais otimista com este presidente ou até acha que Trump era daquelas figuras que podiam surpreender?
Trump surpreendia todos os dias, cada dia era uma asneira pior do que a anterior, mas o problema é que a América precisava de uma geração nova e não sei se Biden tem a energia necessária, embora ele agora tenha vindo a demonstrar alguma força e capacidade de negociação. Claro que a retirada do Afeganistão, como referi, foi um erro monumental que os EUA cometeram pela maneira como aquilo se passou, podiam tê-lo feito de uma forma mais organizada. O problema de Biden é que tem por vezes comportamentos e frases que são um bocado insólitos... esperemos que a democracia americana sobreviva a este período.
Qual é o seu interesse pela cultura chinesa? Os poetas chineses dizem-lhe alguma coisa?
Fui duas vezes à China e eu, que nunca tinha sentido qualquer atração pelo Oriente, encontrei um mundo que me fascinou. Conheci vários poetas, às vezes mesmo poetas que não falavam nenhuma língua compreensível para mim, mas havia tradutores e o interesse deles por conhecerem outras coisas para lá do mundo em que vivem mostra que há uma cultura que é muito forte, que tem muitos séculos de existência e que sobreviveu ao período do maoísmo. Estive em Wuhan dois anos antes da covid, e entrar numa livraria e ver fotografias de todos os grandes escritores da nossa cultura - Hemingway, Virginia Woolf, Joyce - o que correspondia a livros que estão traduzidos em chinês, mostra que há uma abertura de que nós aqui nem sempre suspeitamos.
Ou seja, ir a uma livraria e ver essas imagens todas dá-lhe otimismo em relação à China, é uma China que, apesar de tudo, procura o mundo?
Sim, exato, e mantenho contacto com poetas de quem fiquei amigo.
E em relação ao mundo islâmico? De repente deixámos de falar do que há uns anos era a grande ameaça, o grande terror do fundamentalismo islâmico. Sendo do Algarve, aquela ideia do nosso legado árabe, do Al-Andaluz, conta para si?
Conta muito porque quando fui pela primeira vez a Marrocos senti-me de repente no Algarve que eu tinha conhecido no tempo da minha infância. A arquitetura, as cores das casas, as ruas e a própria comida, os sabores de pratos que tinha conhecido no Algarve e que a minha avó fazia, encontrei-os do outro lado, além da facilidade de convívio com pessoas com uma cultura muito próxima da nossa. Aquela parte de mar que nos separa é, no fundo, um obstáculo apenas geográfico.
Não vê o Mediterrâneo como uma fronteira?
Não. Também conheci a Tunísia, país com o qual me senti muito familiarizado quando passei por uma cidade com o nome de Beja, que me fez sentir em casa. Há sobretudo a maneira como nós, no fundo, temos a mesma experiência de contacto com a natureza, com o convívio, com a poesia, que se encontra de um lado e do outro do Mediterrâneo. Depois, por razões familiares, também tenho uma ligação muito forte com o Líbano, onde tenho grandes amigos escritores. Embora nunca lá tenha ido, é um país de que me sinto próximo e dói-me bastante aquilo que lá está a acontecer neste momento.
Amin Malouf é um desses nomes libaneses que admira?
Sim, exato, além do escritor e do ensaísta que leio é um grande amigo.
Ele tem escrito muito, aliás, sobre esta questão do choque de civilizações. Li também, em tempos, que era admirador do sírio Adonis...
Também. É um poeta que vive entre dois espaços, pois a sua carreira se fez sobretudo no Líbano. Estive com ele em vários sítios, incluindo aqui, mas um deles foi a Turquia, em Izmir, e ver o Adonis falar para um anfiteatro completamente cheio, onde metade eram muçulmanos com um ar nada aberto para valores de liberdade, e vê-lo falar livremente do islão, de um mundo de liberdade e sem necessidade de impor regras rígidas, de acordo com preceitos que já não têm atualidade, como a igualdade da mulher e do homem, e que têm de ser adaptados ao mundo atual, e, ver o respeito com que ele era ouvido, mostra apesar de tudo que há um mundo que está aberto a uma inovação e a uma transformação. Aliás, a política completamente errada dos americanos no Iraque, na Síria e depois a dos europeus na Líbia, veio fazer recuar o mundo islâmico, com o estímulo ao fundamentalismo e a todos esses movimentos regressivos.
Acha que Portugal interiorizou bem as suas diversas origens, ou seja, o legado árabe, o legado judaico? Nós temos consciência de que temos várias heranças e que mesmo a nossa ida ao mundo nos trouxe várias identidades?
Não tanto como em Espanha. O que é uma pena, porque nós temos poetas árabes, temos historiadores, filósofos - e nisto incluo os judeus - que completariam a nossa cultura, mas nada ou pouco disso está traduzido, enquanto os espanhóis prestam muito mais atenção a esse passado judeu e árabe em termos culturais do que nós.
Al-Mu'tamid, oriundo de Beja, é dos poucos árabes nascidos no que viria a ser Portugal que está traduzido?
Sim, esse está traduzido, mas os poetas de Silves, por exemplo, não têm quase nada traduzido.
Conhece esses poetas árabes?
Conheci-os pelas traduções espanholas.
Aprende-se alguma coisa sobre a visão deles do mundo?
É uma poesia muito sensual, também com muita atenção à natureza construída, no sentido de jardins, com animais simbólicos, tal como na nossa Idade Média, para lá da presença da mulher como ser amado. Aquilo que nós vemos quando visitamos a Granada está também nesses poetas de Silves. Claro que a minha cultura é outra e, portanto, eu volto a isso como curiosidade, mas também para ver um pouco o que foi o Algarve dessa época anterior à conquista, mas não propriamente como uma influência muito direta.
Já falámos um pouco do mundo, mas quando falamos do Portugal atual - o Nuno tem três filhos e cinco netos, que não vivem todos em Portugal - sente que o país que temos hoje, quase 50 anos depois do 25 de Abril, é um país que promete um bom futuro aos jovens? Nós falamos muito de que Portugal continua a ser o país mais pobre da Europa, mas às vezes também ignoramos o lado positivo - o clima fantástico, a segurança, a resiliência como povo que se mostrou na pandemia. Como é que olha para o Portugal de 2022?
Olho com muito otimismo e penso que, apesar de tudo, nós temos uma capacidade de sobreviver às crises que tem que ver com uma longa história, que vem desde Alcácer Quibir... Nós temos passado sucessivamente por momentos muito difíceis e conseguimos sempre aguentar e resistir. É uma tradição histórica que decorre também desse facto quase único que é Portugal ter uma língua comum a todo o espaço geográfico, uma cultura que não sofreu propriamente invasões ao longo dos séculos, com uma ou outra exceção, e também mantemos essa unidade política e cultural que é uma força e uma resistência a problemas que possam acontecer.
Portanto, está otimista e acha que Portugal é um país com futuro?
Sim, acho que sim. Quando se diz que as pessoas se vão embora, que há medo das invasões de fora... isso acontece desde sempre. Já Sá de Miranda fala disso quando diz que "as pessoas se vão embora ao cheiro da canela" - mas o facto é que nós, desde os Descobrimentos, assistimos a grande parte do país a ir para o Brasil, para a Índia, para África e isso é compensado pelos que vêm, pelos que entram. Essa capacidade de convivência é também aquilo que nos faz fortes, porque nós não fazemos obstáculo à entrada dessas comunidades que vêm de fora e elas são assimiladas, claro que com problemas e resistências às vezes, mas o que também tem enriquecido a nossa cultura é a absorção desses contributos externos para mudarmos, para nos transformarmos.
Para terminarmos com a poesia: Acha justo destacar algum nome da poesia portuguesa atual, dos já instituídos ou de algum jovem que queira referir?
Bom, esse é um capítulo um bocado complicado porque implica uma distância para ter uma avaliação mais objetiva. Aquilo que eu destacaria é a importância que as vozes femininas têm hoje na poesia portuguesa, e a grande mudança na linguagem está a vir daí. Isto não quer dizer que eu me identifique com tudo o que se publica, mas para dar apenas um exemplo os livros que tenho para ler são obras recentes de Raquel Nobre Guerra, de Rosa Alice Branco, de Filipa Leal, mas muito mais poderia referir. Na poesia como na ficção. E não posso deixar de dizer que estou a ler um livro de um companheiro de geração, Ossos de sépia do Rui Diniz, que vive nos Estados Unidos desde 1969. É uma obra em que revejo o que foram esses anos e reencontro, ao fim de décadas de silêncio, um dos grandes poetas da minha geração e da nossa poesia.
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