Têm mais de 70 anos e continuam a trabalhar. "Ia ficar parado a pensar na morte?"
Entrar na loja do Sr. António, no Rossio, em Aveiro, é viajar no tempo. A "Competidora de Aveiro", como na verdade se chama, é uma mercearia típica de bairro. Das antigas. Há vinho do Porto com fartura, pastas Couto, cremes Benamôr, lâminas BIC. São 15.00 e, atrás do balcão, António Costa Santos, de 94 anos, dá calmamente o troco a um casal espanhol, alheio ao frenesim de turistas que se vive na cidade. Depois de alguma insistência, aceita falar com o DN. "Estive 20 anos a trabalhar para outros, até me estabelecer por conta própria. Estou aqui há mais de 60 anos, sem férias, sem nada".
António não está por dentro da intenção do Governo de pôr fim ao limite que impede os funcionários públicos com mais de 70 anos de trabalhar. Mas, diz-lhe a experiência, que "se tivesse parado com essa idade, dava em maluco". Defende que "quem quiser e tiver força, deve trabalhar, independentemente da idade".
Trabalha de segunda a sexta-feira das 09.00 às 20.00, com uma pausa de duas horas para almoçar, e ao sábado de manhã. "Estou reformado há 30 anos, mas, se fosse viver dos 300 e poucos euros que ganho, não dava sequer para comer. Além disso, ia ficar parado a pensar na morte?", justifica.
Se a reforma fosse maior, António confessa que talvez considerasse parar, até porque já não tem a força de outrora. "Tive uma quebra, uma falha do coração. Estive internado, mas voltei". Mas não tem a certeza se o faria. "A verdade é que eu gosto muito disto. E é melhor trabalhar do que ir para os cafés falar da vida dos outros".
António Garcia, de 74 anos, não sabe precisar com que idade aprendeu o ofício de amolador. "Praticamente nasci aqui", diz ao DN, a partir da oficina do número 173 da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. É um dos poucos profissionais que resistem na cidade. "Ninguém gosta da palavra amolador. Não há quem queira aprender o ofício", lamenta, acrescentando que já se reformou, mas não pensa deixar o posto que ocupa há décadas.
"Gosto disto. Enquanto a saúde me deixar e tiver força, continuarei aqui. Quando não tiver, terei de desistir. Não posso correr o risco de me magoar a trabalhar", afirma, acrescentando que entra às 09.00 e sai às 19.00, com uma pausa de duas horas para "almoçar e descansar".
Por enquanto, diz António, trabalhar é também uma forma de "estar entretido". "Não gosto de estar no sofá a ver televisão. Nem ao domingo consigo passar o dia em casa. Tenho de dar um passeio".
Sobre a possibilidade de o Governo permitir que os funcionários públicos continuem a trabalhar depois dos 70 anos, este homem considera que "para algumas pessoas, isso é benéfico. Em casa, muitas pessoas deixam de andar e surgem outros problemas".
A arte de consertar guarda-chuvas exige alguma destreza e força, mas, adianta António, há muitos homens da idade dele que se mantêm atrás dos balcões, a atender clientes. "É uma forma de se entreterem".
Aos 75 anos, Fernão Mota continua à frente de um escritório de prestação de serviços na área da contabilidade, em Guimarães, onde trabalha, em média, entre 10 a 12 horas por dia. "Já disse que ia pôr uma cama no escritório", graceja.
Até ao momento, Fernão não sente "nenhuma limitação". "Claro que a idade pesa quando queremos correr 100 metros em 10 segundos, mas a saúde não falha e, do ponto de vista intelectual, não sinto limitações". Por outro lado, frisa, "é de aproveitar o conhecimento acumulado ao longo dos anos".
Este contabilista não vê "nenhum inconveniente" no fim da reforma obrigatória aos 70 anos na função pública. "Desde que a pessoa queira, sinta que tem capacidades e quem o rodeia ateste isso mesmo... Não vejo qualquer problema em aproveitar a formação e experiência das pessoas. Até o vejo de forma muito positiva", salienta.
"Ficar em casa a definhar" é uma ideia que não lhe agrada. "Confesso que agora começo a pensar na reforma, mas sou capaz de aproveitar o tempo para passear", adianta.
Depois de cumprir o serviço militar, Fernão trabalhou como diretor financeiro de uma empresa até à década de 80, altura em que a empresa faliu e decidiu abrir um escritório por conta própria. Numa área que está sempre em atualização. "Costumo dizer que tenho cabelos brancos de aturar o Estado".