Só os reis, talvez nem eles, têm os calções num museu. Mas é isso que sucede com Tamagnini Manuel Gomes Batista, ou Nené, ou ainda, como já vi grafado e dito, Tamagnini Nené, o jogador avançado do Sport Lisboa e Benfica a quem chamavam "O Assassino Silencioso", não obstante ser um homem pacífico, sensível e delicado, por vezes até em excesso, sobretudo para aquela enorme mole de machos, una e huna, que, na gíria do desporto-rei, se designa por "massa associativa" (ou "lampiões", termo depreciativo com que, nas décadas de 1930-1940, os sportinguistas, ou "lagartos", apodavam os adeptos do SLB, em alusão ao famigerado bandido do Nordeste brasileiro; já o nome de "lagartos", ao que parece, é mais financeiro e de elite e surgiu por causa de uns títulos reembolsáveis que o Sporting lançou em 1951 para financiar a construção de Alvalade, papéis que, pela sua cor esverdeada, ganharam o cognome de "lagartos", reza a lenda e o mito)..Voltando então aos calções, cumpre dizer que, no Museu Cosme Damião, Estádio da Luz, repousam hoje numa vitrine, à vista de todos, uns calções imaculados, alvíssimos, e que o jogador-homicida é actualmente recordado - e oficialmente chamado quer nos anais do clube, quer na memória dos seus povos - como "O Homem Que Não Sujava os Calções". Questão intrigante esta, sobre a qual muitos falaram, a de um ser humano e adulto que nunca na vida conspurcou a sua roupa, quando, pelos vistos, era suposto fazê-lo, assim mandavam as regras e a etiqueta. "Sujar os calções" tornou-se, de facto, num ersatz, uma metonímia, quiçá mesmo uma sinédoque, de trabalho em campo, do esforçar-se até ao limite, de dar o litro, o sangue e as lágrimas em nome de uma outra peça de vestuário, "a camisola"; regressar ao balneário com um pedaço de relva agarrado aos glúteos era, por outro lado, um timbre de testosterona, um emblema de virilidade lido e interpretado sobretudo em termos negativos ou a contrario: mais do que ser um homem, os calções sujos mostravam que não se era uma menina..Desde então, toda a vida e a obra de Tamagnini Manuel Nené têm sido analisadas à luz desta dialéctica maniqueia do sujar/não sujar (os calções, bem entendido). Num longo documentário sobre o jogador, produzido pela Benfica TV para a cativante série "Vitórias e Património", o tópico dos calções é extensivamente dissecado por especialistas como o humorista Miguel Góis ("Nené era uma referência para mim e para a minha mãe, que quando eu chegava a casa com os calções todos sujos perguntava porque é que eu não poderia ser como o Nené"), o jornalista José Manuel Freitas ("Porque carga de água é que o Nené havia de sujar os calções, fazendo um carrinho para a linha lateral, se sabia que ia perder a bola?"), o cançonetista Fernando Tordo, para quem sujar calções não era, nem é, sintoma de bem jogar, e, enfim, o jornalista Luís Freitas Lobo, o qual, contrariando ideias feitas e preconceitos históricos, veio garantir ter visto Nené de calções borrados. Ouçamos o seu depoimento: "eu vi jogar o Nené no auge da sua carreira, meados dos anos 70, e eu devo dizer que vi o Nené muitas vezes com os calções sujos. Sempre que eu via o Nené a jogar, eu pensava "o Nené nunca suja os calções", e, quando eu vi o Nené com os calções sujos, eu pensei "o Nené suja os calções" e suja os calções porquê? O Nené sujava os calções porque marcava golos muitas vezes indo à relva na lama." Instado a pronunciar-se sobre esta problemática, o jogador atravessou um dado novo, surpreendente, estribado na tese do intervalo: "as pessoas esquecem-se que, quando eu sujava os calções, mudava no intervalo." Argumento só em parte concludente, pois deixa por explicar por que motivo, antes e depois dos intervalos, os calções do jogador permaneciam sempre abstersos, sem ponta de lama ou mácula..Tamagnini Nené nasceu em Leça da Palmeira, Matosinhos, aos 20 de Novembro de 1949, por mera casualidade: filho de algarvios, seu pai era natural de Vila Real de Santo António, onde tinha uma fábrica de mosaicos. Ofereceram-lhe trabalho em Leça, esteve lá dois anos, teve lá dois filhos, um dos quais baptizado com o nome Tamagnini ou, mais singular ainda, Tamagnini Manuel. Depois regressaram ao Algarve, onde permaneceram uns tempos, e foram dali até África, zona da Beira, província de Moçambique. Não havendo televisão, às tardes de domingo tudo parava para ouvir os relatos da bola, datando daí, diz Nené, as origens da sua paixão pelo jogo, alimentada também pelos cromos dos rebuçados e pelas partidas de rua que fazia com os miúdos da escola, entre os quais outra figura de mito, o exótico Shéu Han, que noutra encarnação terá sido monge budista, sobrinho de Morgan Freeman ou figurante da série O Sinal do Dragão (pergunta-se na Internet, e bem: quantos rapazolas portugueses dos anos 70 terão queimado os pulsos a imitar Caine/David Carradine a agarrar o caldeirão em brasa?). Indeciso entre as artes plásticas e o futebol, Nené largaria o sonho das telas, hoje restrito à família e íntimos, e acabou a jogar no Ferroviário da Manga, onde, recorda Shéu, era o único miúdo europeu..Quanto à vinda para Lisboa, há duas teses na doutrina, não necessariamente antagónicas: segundo uma, o seu pai enviou uma fotografia dele no Notícias da Beira, já em destaque, para o seu primo direito, Domiciano Cavém, bicampeão europeu pelo Benfica, em 1961 e 1962, e autor do tento decisivo contra o Real Madrid, na final da Taça dos Campeões, 1961-1962; para outra tese, defendida por José Augusto, terá sido este que, numa digressão de prospecção por Angola, Moçambique e África do Sul, trouxe a autorização paterna para que Nené viesse tentar a sorte nos juniores do Glorioso. E assim foi: ainda menor, veio sozinho de Moçambique, aterrando na Portela a 5 de Fevereiro de 1967. Do aeroporto, seguiu directo para o Lar do Benfica, na Calçada do Tojal, perto da antiga catedral da Luz, onde foi acolhido como um filho pelos dois responsáveis pelo Lar, o senhor Manuel e a dona Otília, que ainda hoje recorda com indisfarçável saudade e não menos ternura. Tempos difíceis, esses, como os de todos os jogadores deslocados: "foi uma angústia muito grande, não só para mim como para os meus familiares, nunca tinha saído do seio da família, era um miúdo introvertido e eles pensavam que eu haveria de ter algumas dificuldades... eu chorava todos os dias para me ir embora...", lembra Nené, voz embargada, para logo dizer que "o sonho se sobrepôs à realidade" e que, ao fim de três, quatro meses, já estava adaptado ao clube e à ambição de ganhar. Começou a jogar nos juniores, sob a batuta de Ângelo Martins, outro portento, e, com o triunfo do Benfica na Taça dos Juniores de 1967/1968, foi convocado para os grandes, na companhia de Vítor Martins e de Humberto Coelho..Estreou-se em 1968, num jogo contra o Vitória de Setúbal, na véspera de fazer 19 anos, e ainda com Otto Glória, que, porém, pouco o tiraria do banco. Com a chegada de Jimmy Hagan à Luz, em 1970, ganhou a camisola 7, extremo-direito, e o Benfica conquistou três campeonatos seguidos, um dos quais, pelo menos, sem ter sofrido uma única derrota. Em 1971, seria eleito Atleta do Ano, e, em 20 de Novembro de 1972, casou com Tina, petit nom de Iria Leontina Pereira Gonçalves, filha de um mestre de obras de Lanheses que, ao serviço da Companhia de Seguros Mundial, se fixara na Venda Nova. Casaram na Igreja de Fátima, com o copo-de-água no velho Estádio da Luz. Tina, que ainda estudou até ao 5.º ano na Escola da Voz do Operário, à Graça, deixou de trabalhar pouco depois do enlace..Entretanto, aconteceu uma outra coisa bela, ainda hoje memorada, os quartos de final da Taça dos Campeões contra o Feyenoord da Holanda. Na primeira mão, jogada em Roterdão, o Feyenoord ganhara por um a zero e, antes de aterrar em Lisboa, o treinador Ernest Happel, um carroceiro com pinta de agente da Stasi, teve a ousadia, ou a desdita, de tecer considerações desprimorosas sobre os jogadores encarnados, chamando-lhes "provincianos", entre outros mimos. Na antevéspera, um azar terrível: segundo o locutor da RTP, Júlio Fernandes, o Benfica viu-se subitamente "privado de uma pedra fundamental do seu xadrez futebolístico", o "categorizado jogador internacional e capitão da equipa, António Simões", que tropeçara nas escadas do estádio quando corria para o treino e ali partiu um braço, estupidamente (palavras dele, Simões). "Nem imagina o que eu senti", disse o sinistrado na cama de uma clínica. "Calculo...", murmurou baixinho o repórter fatalista, que antes de se despedir de Simões lhe desejou, e cita-se, "um rápido regresso aos rectângulos de jogo, onde você, Simões, é, efectivamente, figura cimeira." Na noite de 22 de Março de 1972, pelas 22 horas e 45 minutos, iniciava-se a segunda mão da disputa: Nené marcou ao minuto 6, Jordão aos 30 minutos, Boskamp levou um amarelo, Eusébio outro e, aos 75 minutos, o abominável Rijsbergen desfeiteou o grande "Zé Gato" (José Henrique Marques, n. 1943), fazendo gelar a Luz. A dez minutos do fim, o Benfica estava de rastos, eliminado. Num estádio cheio, silêncio total, mutismo absoluto, 100 mil almas caladas. Como sempre, alguns adeptos, diz-se que muitos, decidiram sair mais cedo, com as almofadas debaixo dos braços, os lábios rosnando impropérios, a deserção do costume, na descrença lusitana. Depois, quando ouviram os gritos, aquela Luz vindo abaixo, regressaram a correr afogueados, e pelo canto dos olhos ainda viram, com sorte, o golo decisivo de Nené aos 81 minutos. A seguir, só para esmagar, só para humilhar, só para calar o carroceiro, Jordão marcaria um outro golo aos 87" e Nené mais um golo ainda, aos 90". Os provincianos ganharam por 5 a 1, três tentos de Tamagnini, o assassino silencioso..O que se passou a seguir é de todos conhecido, pois aprendemo-lo na escola, na disciplina de História de Portugal, nos bancos da universidade, nas melhores enciclopédias: treinado pelo "velho capitão", Mário Wilson, que o passou a ponta-de-lança, e depois por Eriksson, Nené jogou 578 partidas pelo Benfica, de 1967 a 1986, marcando 362 golos. Foi o jogador que mais vezes representou os encarnados na história do clube, e apenas Eusébio e José Águas marcaram mais pelas águias. Pela Selecção Nacional, jogou 66 vezes, de 1971 a 1984, fazendo 22 golos. Durante dez anos, de 1984 a 1994, foi o jogador português com mais internacionalizações, record superado nesse ano pelo portista João Pinto. No total da carreira, contando com Moçambique, 1020 jogos, 594 golos. Dez vezes campeão nacional pelo Benfica (68/69, 70/71, 71/72, 72/73, 74/75, 75/76, 76/77, 80/81, 82/83 e 83/84); quatro Taças de Portugal (71/72, 79/80, 80/81 e 82/83); duas supertaças (79/80 e 84/85); melhor marcador do campeonato em 1980/81. Dos feitos memoráveis, Nené recorda os cinco golos ao Ajax, no Torneio de Paris; o hat-trick ao Feyenoord, já citado; os cinco frente ao Leixões, 1975-76, à Académica, 1978-1979, e ao Alcobaça., 1982-1983. De todos, destaca o hat-trick ao Porto, na final da Taça, em 1981, vitória por 3-1. Depois de ter fuzilado Tibi, mas antes de subir ao pódio, o capitão Nené, com admirável classe, trocou a camisola com Romeu e recebeu a Taça vestido com as cores do Porto, mostrando um fair-play gigantesco: "ergui a taça com a camisola do Futebol Clube do Porto em homenagem, porque que o nosso adversário também merecia, achei que ficava bem receber a taça com a camisola do Porto." Tudo isso é passado, coisa da Idade da Pedra, e assistir hoje a uma partida de futebol, como já alguém disse, é ver 22 milionários a correrem atrás de uma bola, pouco mais do que isso..Nos jogos, Nené tinha uma táctica secreta, engodando os defesas com perguntas sobre as suas mulheres e filhos, as namoradas. Depois, deixado à solta, com passe de Shéu, apunhalava-os a sangue-frio, deixando-os exangues no campo, enquanto ele jamais se deitava no relvado, pois, segundo disse, o futebol joga-se de pé (e ao pé, acrescentaríamos). As apreciações do seu desempenho oscilam entre o poético ("um homem que dançava na grande área") e o tecnicista ("tinha uma percepção exacta onde é que a bola ia cair"), mas são convergentes no reconhecimento de um talento ímpar, nas raias do genial. Segundo os dados de que dispomos, passíveis de revisão, Tamagnini Nené foi o jogador que mais partidas fez na história do SLB e o segundo melhor marcador depois de Eusébio. Retirou-se em 1984, mas, exceptuando o consulado de Vale e Azevedo, permaneceu ligado ao clube em qualidades várias, como treinador de juniores, prospector, director, coordenador, director técnico ou lenda viva..Hoje com 73 anos, teve há pouco um azar com o filho, Sandro Nené, um funcionário da CGD, balcão de Ílhavo, que desviou 48 mil euros das contas bancárias dos clientes num momento de infortunada loucura, motivada, parece, pelo segundo divórcio. Em tribunal, confessou tudo, pediu perdão, declarou-se na miséria, disse que dependia dos pais para pagar o remanescente em falta, cerca de 8.900 euros (Flash!, de 22/2/2020)..O outro filho nasceu e foi baptizado como Paulo, mas aos três anos já dava sinais de disforia de género. "Com 3 anitos, ela escondia a pilinha entre as pernas e dizia que era uma menina. Dei-lhe alguns açoites! Para mim, era impensável ter um filho que me dizia que queria ser uma menina", recorda a mãe, que refere ainda que o marido era muito mais tolerante e compreensivo do que ela, que chegava a esconder as bonecas com que Nené brindava o filho/filha. Depois de se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual genital, mais conhecida por mudança de sexo - e depois adoptar o nome Filipa Gonçalves -, a filha de Nené é hoje uma mulher famosa, que, como modelo (1,80m, medidas 85-60-90, calçado 41), desfila para os maiores costureiros e, como actriz, entrou na série Camilo e Filho, em 2000, fez vídeos para o programa "Sex Appeal", da SIC, foi concorrente na segunda edição da "Quinta das Celebridades", da TVI, do "Splash! Celebridades", da SIC, e entrou no "Você na TV". Informa ainda a Wikipédia, vá-se saber porquê, que, em Setembro de 2005, Filipa Gonçalves esteve no Brasil, na companhia do actor porno e político também porno Alexandre Frota, e também que é solteira e que reside no bairro de Benfica, em Lisboa..Em 2010, Filipa publicou as suas memórias, intituladas Obviamente Mulher (Âncora Editora). Nelas, Nené presta depoimento, dizendo: "Não posso dizer que foi fácil. Não estava preparado para enfrentar estas diferenças nem sabia como as interpretar. E, por outro lado, estava inserido num meio declaradamente machista, que vê nos filhos homens um prolongamento de si mesmo e tudo o que foge às regras é rejeitado. Mantive sempre a cabeça erguida e aceitei os desígnios que Deus me atribuiu com alguma serenidade. Os filhos nasceram para ser amados, protegidos e respeitados, independentemente das suas características ou dos problemas que arrastam consigo. A transexualidade é uma situação complexa que leva o seu tempo a aceitar e a entender.".Por aqui se mostra que, para se ser um grande homem, não é preciso sujar os calções. Nené diz o que já adivinhávamos, confessando a dificuldade que teve em lidar com a "transsexualidade primária" da filha no meio que era o seu, futeboleiro e machista. Na véspera da intervenção cirúrgica, Nené foi deitar-se mais cedo, acometido de uma "febre psicológica", nas palavras de Filipa, que recorda ainda que a mãe passou a tarde na Igreja de Benfica e que, no dia da operação, "estavam os dois de rastos, com o medo estampado nos olhos". Gastaram fortunas com psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas, Filipa suportou os insultos dos colegas de escola, que lhe chamavam "bicha" e "maricas", falou com o travesti brasileiro Roberta Close, namorado da cabeleireira Marina Cruz, e, em todo esse percurso, ou calvário, teve o apoio incondicional dos pais, um dueto indestrutível: "não conheço nenhum casal que mantenha uma relação igual ou semelhante às dos meus pais". Nené nunca abriu mão de Filipa e, de cabeça erguida, com a serenidade de sempre, calou os que o hostilizaram ou que o elegeram como motivo de gozo. Foi este, sem margem para dúvida, o maior golo da sua carreira, aquele que o melhor o define como ser humano benfiquista - e, logo, bom pai de família..Hoje com 73 anos, Nené leva uma vida discreta, a que mais gosta. Como segredos de longevidade, aponta o facto de nunca ter bebido álcool, ou sequer sumos, só água, apenas água, de nunca ter tomado comprimidos para o que quer fosse, de nunca ter descurado o exercício físico e as preocupações com uma boa alimentação e um descanso adequado. Esperemos que assim prossiga e que tudo isso o mantenha vivo e saudável por bons anos, sempre com os calções muito alvos - e a alma mais pura ainda..*Prova de vida (17) faz parte de uma série de perfis.Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.