Muito do cinema francês a chegar aos ecrãs portugueses chega por fundo de catálogo e cada vez tem maior dificuldade em ser notado. Poucos são os filmes franceses, nesta altura, que conseguem encontrar público e era pena que o mesmo acontecesse com este Alta Costura, de Sylvie Ohayon, conto de fadas moderno parisiense, algures entre um desejo de cinema de autor a prestar continência à indústria e um piscar de olho à velha comédia dramática clássica. Uma boa surpresa com olhar feminino suave, neste caso de uma realizadora a tentar encontrar uma voz própria numa ideia de proposta a pensar em públicos vastos..A história é situada no mundo da moda, mais propriamente da alta costura. Nathalie Baye, sempre sublime, é Esther, chefe das costureiras da casa Dior, alguém cujas mãos fazem arte pura. Uma mulher que se apaixonou tanto pelo seu trabalho que vive essencialmente para ele. Quando está prestes a sair para uma amarga reforma decide apostar numa aprendiz inusitada, Jade (a preciosa Lyna Koudri, conhecida de The French Dispatch, de Wes Anderson), a jovem dos subúrbios que lhe roubou a carteira e, depois, se arrependeu. Entre as duas forma-se um elo especial, mesmo contra a vontade de outras costureiras da Dior..Numa conversa por Zoom por ocasião dos Encontros Unifrance, Sylvie Ohayon defende a importância das pessoas por detrás das grandes marcas. "Costureiras como aquelas que vemos no filme são importantes para manter uma certa imagem de uma belle France...Uma marca como a Dior faz parte da cultura francesa, mas, sabe, os piores inimigos de França são os franceses: estão sempre no bota abaixo. Podemos ter falhas, como todos os países, mas ninguém se lembra de glorificar estas coisas magníficas e artesanais, como a a alta costura e a gastronomia...Este filme serve para lembrar que as peças de alta costura são feitas por gente que não é rica e que trabalha no duro todos os dias"..Filmado com um equilíbrio de emoções sensível e sempre perto de uma verdade íntima das personagens, Haute Couture cruza também vários registos, nunca se comprometendo entre os deveres da narrativa com fórmula, nem com os deslizes do melodrama emocional, sendo sobretudo um filme que repensa a noção do dever laboral numa França cada vez mais materialista.."Quis fazer um bom filme para o grande público. Eu venho do povo e falo para pessoas como eu! Mas hoje é difícil levar pessoas às salas, sobretudo após a pandemia. Em França ou em Portugal, infelizmente, as pessoas só querem o Spider-Man. A sorte é que em França ainda temos um sistema que obriga os impostos a ajudar o cinema, embora neste momento a grande referência de cinema social venha da Itália. Aliás, tornei-me cineasta graças à inspiração do cinema social italiano", conta a realizadora que confidencia também que o título inicial seria A Beleza do Gesto: "Este é filme sobre uma profissão cujo dom se pode transmitir e é muito pessoal para mim. Tal como a Jade, tenho uma filha que também poderia seguir um mau caminho. Às vezes, é bom sermos ajudados por alguém. Ela ainda não encontrou essa pessoa que a possa ajudar, mas ainda tem 20 anos e, aos poucos, vamos ver se consegue uma orientação. Claro que já viu o filme e chorou muito. Há quem me tenha dito que amo muito a minha filha por ter feito um filme assim...Ela soube disso e ficou sensibilizada - tinha sempre a ideia de que eu preferia os seus irmãos"..Sobre a personagem da mestre costureira, a realizadora prefere ver nela paixão e não obsessão. Para Sylvie, a protagonista deu toda a sua vida ao trabalho: "Eu também sou como ela. Quando era adolescente tinha problemas com os rapazes: ninguém gostava de mim e foi aí que o meu avô, na Tunísia, me disse para me atirar totalmente para o trabalho. E o trabalho tornou-se a minha paixão! Mas, confesso, tinha um feitio terrível...O meu avô também me dizia que era o trabalho que me iria dar todo o amor que eu depois poderia oferecer. A minha mãe também sempre me mandou trabalhar e esquecer os rapazes"..No fim, a cineasta não se acanha para garantir que no seu filme há zero de intenções promocionais em relação à marca Dior: "Sei que muitos vão achar isso, mas não é o caso. Aqui o que é interessante não é a Dior, é o ofício das costureiras! Nem vemos assim tanto os vestidos, mas sim o seu fabrico... As cenas dos desfiles são rápidas e curtas. Quis prestar uma homenagem às costureiras! E os ateliers da Dior e da Chanel abriram-se todos para mim. Falei com muitas costureiras e, para elas todas, o mais importante é o vestido. Mas o filme também fala do subúrbio através da personagem de Jade e eu também venho desses bairros, onde há tantos portugueses. E agora todos falam de Portugal, os franceses querem ter todos uma casa em Portugal. Nos anos 80 - lembro-me tão bem - os emigrantes portugueses tinham uma vida tão dura... Cresci num bairro onde portugueses, árabes, italianos e africanos acabavam por se darem bem. Culturalmente, foi um crescimento muito rico"..Por cá, a primeira obra de Sylvie está inédita, Papa Was not a Rolling Stone (2014), mas depois deste Alta Costura fica-se curioso para saber que mais cinema esta cineasta tem para dar..dnot@dn.pt