"Sou um especialista em ditaduras." A primeira foi a de Salazar
A ementa de um dos cafés da Rua das Janelas Verdes, em Lisboa, tem vários tipos de brunch, tradução em inglês, decoração saudosista. Há 57 anos, quando o jornalista da Associated Press (AP) Dennis Redmont chegou a Portugal, este cenário seria impossível porque era num tempo em que o mata-bicho era pão e manteiga. Mais de meio século depois, Dennis, que há três anos comprou casa junto ao Museu de Arte Antiga, na mesma Rua das Janelas Verdes, tem como vizinha Madonna. Que diria disto Salazar?
Foi em janeiro de 1963 que o jornalista aterrou na capital de um país "onde não se passava nada porque tudo aquilo que se passava era sob a superfície", diz, já sentado no sofá da sua casa, onde conversámos sobre como foi assistir à transformação de um país. Portugal foi o primeiro, mas não o único e nem o último país onde trabalhou em circunstâncias difíceis. Esteve no Brasil, na Argentina, no Chile e em Itália.
"Sou um especialista em ditaduras", brinca. "Tinha a experiência de Portugal, sabia como era a censura e como me comportar", explica. O antigo correspondente da AP chegou a Lisboa com 23 anos. O jornalista surgiu representado pelo ator Simão Cayatte na série da RTP1 3 Mulheres.
Era um dos grandes amigos de Snu Abecassis - o filme sobre a dinamarquesa estreou-se no mês passado - e, tal como a editora, acompanhou as profundas transformações na política e na sociedade portuguesas dessa época. "Portugal estava em ebulição", recorda.
Dennis Redmont, hoje com 76 anos, é natural de Washington e filho de um correspondente estrangeiro para a CBS em Paris - o pai trabalhou para o famoso Walter Cronkite. Não quis ser jornalista por imitação, mas porque queria muito voltar à Europa. Tinha crescido em França, sentia-se europeu. Assim que pôde mostrar o que valia - e mostrou logo quando foi destacado para cobrir o funeral de John F. Kennedy -, pediu à agência para o mandar para longe. As opções eram Cuba ou Portugal. Um colega foi colocado primeiro em Cuba e Redmont rumou a Lisboa.
"A época de 1965 a 1967 foi mais importante do que pensavam, mas na altura nós estávamos a viver isso e não tínhamos essa noção." Dennis acabara de chegar a Lisboa quando recebeu um telefonema de Madrid, do editor da AP em Espanha. "Tinham encontrado o corpo de Humberto Delgado na fronteira." Mário Soares era alguém quase desconhecido, "apenas um advogado da oposição", mas era o defensor de Delgado.
Redmont viajou com Soares até ao local onde foi encontrado o corpo desmembrado do General sem Medo. Já tinham retirado o cadáver, mas ainda havia cabelo e roupa no chão. Foi o primeiro trabalho importante do jornalista em Portugal, tanto que começou a dar logo nas vistas.
"Eu escrevia uma notícia sobre Portugal, mas nunca aparecia nos jornais daqui. Era tudo controlado pela censura - o que está muito bem representado na série [3 Mulheres]", diz. Os intelectuais e os estudantes portugueses tinham acesso à informação não censurada através dos jornais estrangeiros. Redmont publicava no Le Monde, no The Times e no The New York Times. Notícias que não agradavam ao regime.
"Tinham-me dito que não acontecia nada neste país, mas de 1965 a 1967 aconteceu de tudo: desde a morte do general Delgado ao início das guerras coloniais." Enviaram-no com a seleção portuguesa para o campeonato de futebol em Inglaterra, prevendo pouco tempo de estada. "Nesse ano a equipa portuguesa ficou em terceiro lugar." Logo depois, o papa Paulo VI visitou Portugal e nessa visita havia uma mensagem política, "foi marcadamente religiosa, o papa não passou por Lisboa. Era uma forma de o Vaticano se afastar da questão das colónias portuguesas".
Dennis era bom a farejar, mas ainda que o não fosse sucediam-se as deixas. Houve ainda a inauguração da Ponte Salazar - construída por americanos -, o início do escândalo dos Ballet Rose, o despontar dos movimentos estudantis. "Portugal era um país rico em notícias, era preciso escavar, mas estava lá tudo."
Quando chegou a Portugal, Redmont foi viver para a Rua Castilho. Conheceu Snu Abecassis [uma das mulheres representadas na série da RTP] e Vasco [Abecassis] porque, tal como ele, também tinham estudado em universidades norte-americanas (Dennis estudou na Colúmbia). Conta que ficaram amigos "imediatamente".
"Eu frequentava os meios intelectuais, ia às embaixadas ou aos bares, porque era lá que se sabiam as notícias, não era através dos meios oficiais. Muitas pessoas estavam a sair do país ou autoexilavam-se, algumas porque queriam evitar a ida para a tropa."
O escritório da Associated Press ficava na Praça da Alegria e lá trabalhava também o jornalista português Joaquim Letria. No mesmo prédio trabalhavam outros correspondentes estrangeiros. Na altura, Redmont começou a interessar-se pelos movimentos estudantis quando recebe uma informação perturbadora.
"A minha fonte era um médico que tinha tratado dois estudantes e estava indignado com o que vira." Uma estudante tinha tentado cometer suicídio ao partir os óculos e ingerir os vidros. O outro tinha partido vários ossos quando, segundo a PIDE, caíra na prisão. O estudante era Rui D"Espiney, um resistente maoista, brutalmente torturado pela polícia política.
O artigo de Redmont foi publicado nos jornais International Herald Tribune e Le Monde. A notícia da tortura desencadeou manifestações de estudantes nas universidades. A Guerra Colonial estava ao rubro e Portugal incandescente.
Dennis pôs-se a olhar para o mapa. Começou a registar a atividade de guerra em Angola e a contabilizar o número de mortos entre as tropas portuguesas. Fez as contas e largou a bomba: "O número de mortos e feridos na Guerra Colonial era maior do que no Vietname."
Foi a gota de água para a censura, que enviou oito agentes da PIDE para a Praça da Alegria. Dennis Redmont até passou por eles, mas, numa época sem internet, a sua fotografia não estava em lado algum. Não o reconheceram, mas os colegas da imprensa estrangeira e portuguesa avisaram-no.
Pediu ajuda ao embaixador norte-americano, que combinou tudo com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, mas ainda assim foi interrogado pela PIDE longas horas. "Queriam saber quem era a fonte da notícia dos dois estudantes - não negaram nada, porque eu dispus-me a escrever um desmentido se fosse mentira -, mas queriam só saber quem me dissera." Redmont não disse. Nem agora o diz.
Recebeu ordem de expulsão mas escreveu uma carta - que chegou ao chefe da AP por meio de mala diplomática - e disse que se o expulsassem estariam a criar um precedente. Ficou. Acabaria por partir no final de 1967. Foi trabalhar para Itália, onde se casou com Manuela Paixão, correspondente portuguesa em Roma, e pouco depois rumou ao Brasil, onde se vivia um regime ditatorial. Quando aconteceu o 25 de Abril, pediu para voltar, "Eu conheço aquela gente toda", disse-lhes. Não o deixaram.
Cinco décadas depois, Redmont, que foi durante 25 anos diretor da AP para o sul da Europa, assiste ao regresso desse fantasma que lhe é tão familiar. "Uma parte do mundo sente saudades da simplicidade. A ditadura sempre se aproveitou dessa simplicidade."
Atualmente, divide-se entre Itália, Turquia e Portugal. Casou de novo com Zeynep Tinaz, antiga jornalista da AP e atual executiva na agência. É em Portugal que tem dois filhos e netos. Há três anos, decidiu olhar para onde tudo começou: foi à Torre do Tombo e consultou o seu dossiê da PIDE. Encontrou as cartas de um amigo que nunca chegou a receber - todas confiscadas pela censura -, leu as anotações da polícia política e decidiu ir visitar Rui D"Espiney, o estudante sobre quem escrevera no início da sua carreira. Foi em 2016, o antigo resistente morreu pouco depois.
Continua a escrever sobre Portugal - para o Politico, no seu site, e em artigos publicados na imprensa portuguesa. O jornalismo mudou, Dennis Redmont continua atento, mas nada do que se passa hoje lhe parece novo. "Fake news? A censura era especialista em fake news", ri-se.