"Sou físico teórico, tenho a liberdade de imaginar coisas"

Pelo terceiro ano consecutivo, Nuno Peres, físico da Universidade do Minho, é o cientista português mais citado, e integra a lista da Thomson Reuters 2016, com apenas três mil cientistas de todo o mundo. O trabalho deste investigador de 49 anos sobre o grafeno valeu-lhe o reconhecimento
Publicado a
Atualizado a

É pelo terceiro ano consecutivo o investigador português mais citado. Já não o surpreende?

Na verdade, não. Tenho uma ideia do número de citações e sei que provavelmente estarei na lista.

Mas é uma boa surpresa.

É sempre agradável ver o nosso trabalho reconhecido. Dá uma certa satisfação pessoal e talvez uma motivação adicional, mas não muda em nada o trabalho. Tenho uma motivação suficientemente forte para que o meu trabalho não dependa destas coisas, que umas vezes acontecem e outras não.

Qual é a importância deste reconhecimento para a ciência que se faz em Portugal?

Mostra que a ciência tem hoje em Portugal os mais altos padrões internacionais. É esse o significado que podemos tirar desta lista em que há um grupo de cientistas portugueses. Isso não quer dizer que não haja outros que estão a fazer um trabalho altamente relevante. As citações demoram um certo tempo a aparecer. Estou convencido de que para o futuro teremos outros, e cada vez mais cientistas portugueses na lista.

Está na Universidade do Minho, numa região do país menos central. Ser o investigador português mais citado também é bom sinal nesse sentido?

É um sinal ótimo, porque mostra que não precisamos de estar nos grandes centros urbanos para fazer ciência internacionalmente competitiva. E quer dizer que a Universidade do Minho se posiciona a nível nacional e internacional como uma universidade de referência.

Que condições encontra na sua universidade para que isso seja assim?

É uma estratégia da Reitoria da Universidade do Minho, que facilita o acesso a conferências internacionais e dá as condições físicas para acolhimento dos estudantes de doutoramento e pós-doutoramento. Há todo um ambiente que favorece o trabalho de investigação e as pessoas sentem-se motivadas. E, claro, a universidade tem a qualidade dos seus investigadores, que também fazem a sua parte.

A anterior avaliação da FCT, em 2013, que foi muito contestada, pôs em causa o financiamento do seu centro, numa altura em que já estava no topo das citações. Isso está ultrapassado?

Está. Recorremos da avaliação e foi-nos dada a razão. Tivemos uma classificação de Muito Bom e o financiamento correspondente.

E agora, como vê a atual política de ciência?

De forma muito positiva. Há a intenção de fazer investimento em ciência e tecnologia, de apostar no emprego científico e de fazer uma avaliação com um painel alargado, com o objetivo de avaliar as diferentes sensibilidades dos centros de investigação. Na avaliação anterior havia uma estratégia de reduzir o sistema científico e o atual governo tem a estratégia contrária, o que pode produzir um impacto social muito mais favorável, porque o investimento em ciência permite o desenvolvimento social e económico.

Começou a estudar o grafeno em 2004. O que o interessou neste material?

Foi o facto de ser uma forma bidimensional da matéria. É preciso imaginar uma folha de papel com a espessura de um único átomo. Não pode ser mais fino do que isso.

Nem sequer um cabelo é tão fino.

Nem perto. O grafeno é cerca de um milhão de vezes mais fino do que um cabelo. O que me interessou neste material foi o facto, sendo bidimensional, de as cargas elétricas só terem duas direções para se movimentarem. E isso, pensava eu, iria trazer o que chamamos física nova. O meu primeiro trabalho científico sobre o grafeno foi anterior à descoberta do material propriamente dito. Eu achava que ele podia existir um dia, não sabia como, mas depois foi isso que aconteceu.

Como deu com um material que ainda não existia?

Sou físico teórico, tenho a liberdade de imaginar coisas. Imaginei uma coisa que não existia ainda. E depois podem acontecer duas coisas: ou isso nunca se realiza na natureza, e portanto o trabalho é essencialmente inútil, ou realiza-se e o trabalho torna-se muito relevante. Foi o que aconteceu comigo.

Foi o primeiro a lembrar-se do grafeno?

Não, já havia trabalhos anteriores, descobri isso mais tarde.

Começou depois a colaborar com Andrei Geim e Konstantin Novoselov, que ganharam em 2010 o Nobel da Física pelo seu trabalho no grafeno. Como aconteceu essa colaboração?

Encontrei o Andrei Geim numa conferência internacional nos Estados Unidos, em 2005, e verificámos que os valores que nós estávamos a calcular eram as mesmas quantidades físicas que eles estavam a medir no laboratório. Foi uma coincidência. Começámos a trabalhar juntos e tornou-se muito mais interessante.

E depois publicaram um artigo em conjunto.

Sim, o primeiro artigo foi em 2006, e o último em 2011. Agora não temos nenhum trabalho em comum, mas mantemos contacto, até porque pertencemos ao mesmo projeto europeu, o Graphene Flagship, que tem cerca de 200 grupos. Lidero ali o único projeto português, no qual estudamos a interação da luz com o grafeno. A ideia é estudar a possibilidade de produzir componentes que simultaneamente permitam a propagação da luz e da corrente elétrica.

Isso é útil, por exemplo, para quê?

Para sensores de gases ou de moléculas orgânicas, por exemplo. Para sistemas de deteção de luz ou componentes de optoeletrónica para telecomunicações, em que haja propagação simultânea de sinais misturados de luz e corrente elétrica. É uma nova geração de materiais.

Quando teremos esses novos materiais nos nossos telemóveis?

Não sei. O nosso projeto é a dez anos, e começou há dois. A ideia é de que no final do projeto haja muitos tipos de dispositivos ou de instrumentos à base de grafeno. O intervalo é este: dez anos para levar a investigação dos laboratórios e das universidades para o mercado.

Fazendo a conta, faltam oito anos.

É. Mas isso não quer dizer que durante o processo não vão aparecendo coisas novas. Uma das aplicações que penso que virá ainda mais cedo é a de materiais compósitos com grafeno para se obterem polímeros com outras propriedades.

Que podem servir para quê, por exemplo?

Para revestimentos de materiais condutores elétricos, para se fazer uma blindagem eletromagnética e uma proteção de componentes eletrónicos. Um exemplo seria na proteção de componentes eletrónicos dos automóveis.

O seu dia-a-dia é fazer contas?

Cada vez menos. No passado, o meu dia-a-dia era mais fazer contas, dar aulas, reunir-me com os meus estudantes para os orientar, fazer o trabalho administrativo que a universidade exige aos professores. Neste momento sou vice-presidente da Escola de Ciências da Universidade do Minho e no Centro de Física da Universidade do Minho e da Universidade do Porto dirijo o meu grupo de investigação.

Além do grafeno em que outras áreas está a fazer investigação?

Trabalho noutros materiais que também são bidimensionais, os chamados dicalcogenetos de metais de transição. Estes já existem, não os imaginei antes. São muitos e têm várias propriedades interessantes

Poderão ter vantagens para poupar os recursos do planeta?

Sim. A ideia é de que eles permitam a miniaturização dos sistemas de microeletrónica e com isso obter taxas de consumos de eletricidade mais baixas ou computadores mais rápidos. Mas esta investigação ainda está muito no princípio.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt