"Farei greve! E começo logo de manhã... Não levo as minhas filhas à escola e também não farei tarefas domésticas (óbvio), nada.".Joana Micaelo, 34 anos, professora, responde assim ao apelo do DN no Twitter a que se identifique quem participa na greve feminista de 8 de março, a primeira em Portugal. Joana dá aulas em duas escolas - uma secundária e outra profissional - no Alentejo e não conhece mais ninguém que faça greve. "Estou a tentar arranjar transporte para ir à manifestação em Lisboa, porque aqui em Évora estava marcada uma mas desconvocaram. Parece que vão cinco pessoas de Évora à manif e há lugar para mim.".O sindicato de que é associada não aderiu. "Mas o STOP (Sindicato de Todos os Professores), fez pré-aviso, e a partir do momento em que um sindicato de âmbito nacional o faz qualquer professor pode fazer greve." E Joana quer fazê-la por vários motivos. "Assumo-me como feminista, quero dizer que estou aqui e quero participar numa greve internacional. Tenho duas filhas e acho que é importante que elas cresçam num ambiente de luta. E quero também dar o exemplo aos meus alunos, porque lhes falo de igualdade nas aulas.".Alunos que, conta, têm entre os 15 e os 21 e lhe chegaram sem nunca alguém lhes ter falado de feminismo. "Achavam que era um machismo ao contrário, havia um desconhecimento total, medo até. Explico-lhes começando pela ONU [que criou o Dia Internacional da Mulher em 1975 para celebrar a luta feminista por melhores condições de trabalho, salários iguais e direito de voto que vinha já do século XIX], mostro o que é." Sorri ante a perplexidade da jornalista. "Para ter uma ideia muitos dos meus alunos são de aldeias da zona de Beja e nem nunca tinham ouvido falar de Auschwitz sequer. Tenho de levar fotos, explicar tudo.".A voz traduz o entusiasmo e a entrega mas também uma espécie de alegria, a de poder estar a fazer a diferença na vida dos seus alunos. Como uma professora fez na dela, na Universidade de Évora: "Fiz o curso de Filosofia e tive uma professora extraordinária na licenciatura e no mestrado, chamada Fernanda Henriques. É por causa dela que estou aqui." Aqui, no ensino, mas também na luta feminista.."Nem partido nem marido".Na mesma luta está Catarina Martins, não a líder do Bloco mas a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e a investigadora do Centro de Estudos Sociais. O sindicato de que é filiada, o Snesup (Sindicato Nacional do Ensino Superior), aderiu à greve, e ela igualmente. Porquê? "Sou feminista, sou professora do doutoramento em estudos feministas. E acho que é preciso cada vez mais o ativismo feminista num momento em que a extrema-direita está a subir na Europa e surgem discursos e movimentos de retrocesso. E sou mãe de duas filhas, negras ainda por cima. Estou sempre na luta feminista e antirracista.".Com 48 anos, Catarina sente-se entre duas gerações de feministas que nem sempre se entendem. "A que fez a luta antifascista não se revê no militantismo das mais jovens, que é ligado à luta LGBT e à rejeição da conjugalidade tradicional. O feminismo tem muitas tendências... O mote da marcha este ano é "nem partido nem marido", e acho infeliz e redutor porque afasta muitas pessoas, que não se sentem incluídas.".Não tão infeliz ainda assim como a iniciativa que, recorda, em 2017 o executivo camarário promoveu para assinalar o Dia da Mulher: "Um workshop de dança no varão e de unhas de gel. Fizemos um protesto enorme. Temos muitas jovens feministas aqui, há duas Repúblicas de estudantes que são feministas. Coimbra tem um grande contraste: de um lado esses movimentos progressistas e do outro os das praxes, que são a coisa mais conservadora e machista que há.".A praxe é uma das formas de reprodução de estereótipos e violência machista referidas no manifesto da greve - um texto muito longo onde parece, além da enumeração de questões especificamente relacionadas com a igualdade de género, caber tudo, da crise dos migrantes às guerras, passando pelo problema da habitação. E que apela a quatro vetores de greve: trabalho, estudantil, de cuidados e consumo..Filipa Moreira, 20 anos, estudante de Sociologia na Faculdade de Ciências Humanas da Nova, em Lisboa, vai fazer três delas: "Às aulas mas também ao estágio no Observatório Nacional de Violência e Género e ao consumo." Como ela, várias amigas e professoras faltarão às aulas esta sexta-feira, evitarão consumir e, como Joana Micaelo, as que estejam nessa situação poderão ainda recusar a informal "prestação de cuidados", que ainda assenta sobretudo sobre os ombros femininos. Porque, claro, a ideia é mostrar que "se as mulheres param, o mundo pára" - como na primeira greve feminista de que há notícia, a ocorrida na Islândia em 1975 com o intuito de tornar visível a importância do trabalho feminino, nomeadamente o informal, chamado doméstico.."Se calhar não devia ser neste dia".Se as mulheres parassem o mundo pararia, decerto. Mas será que a adesão no país vai dar para fazer sentir isso? Se depender das centrais sindicais, não de certeza. Na UGT, Lina Lopes, a presidente da Comissão de Mulheres, para quem o DN é remetido, tem uma primeira resposta perplexizante. "Não sei se não aderimos. Ninguém nos enviou nada para aderirmos, soubemos pelas redes sociais.".A informação dada pela Rede 8 de Março, que reúne vários coletivos e dois partidos - o BE e o MAS (Movimento Alternativa Socialista) -, ao jornal era a contrária. Lina Lopes investiga e afinal sim, a UGT foi contactada. "Efetivamente mandaram um email em janeiro mas acabámos por não responder porque se meteram outras coisas. Mas para ser franca não me parece que o 8 de março seja o dia apropriado para esta greve. Porque o governo faz montes de coisas e nós temos de estar. O governo também não está a fazer greve... Aliás quando vi isso pensei: "Outra coisa no dia 8 de março." Não estou a desculpar-me mas se calhar não devia ser neste dia. É simbólico, claro, mas devíamos arranjar outra data. Reconheço que não demos a importância que devíamos ter dado, tanto que já nem me lembrava. Para a próxima estaremos e sou eu que vou contactá-las. Porque não é a UGT que não quer participar, foi um lapso. Somos muito poucos para as solicitações que temos. Mas é importante, até porque isto da igualdade entre homens e mulheres cada vez está pior e não melhor.".Na CGTP, repararam nos emails e até reuniram com a rede, mas nada resultou daí. Explica a interlocutora, Fátima Messias, do Conselho Executivo da central sindical: "Aquilo que discutimos foi a possibilidade de a CGTP fazer um pré-aviso de greve - só fazemos isso nas greves gerais, e de acordo com os motivos dos sindicatos e em termos de objetivos de greve. Mas fomos confrontados com esta data, e não fomos parte nos contornos da decisão.".Lembrar que a greve feminista internacional é um movimento surgido em 2017 nos EUA (quando vários grupos, após o êxito da Marcha das Mulheres, que protestou contra a eleição de Trump, convocaram greve para o 8 de Março, sob o lema "A Day Without a Woman"/Um dia sem as mulheres). E que em Espanha em 2018 teve uma adesão formidável, que se estima mais de cinco milhões de pessoas, manifestações de dezenas de milhar de pessoas em 120 cidades, e um apelo das centrais sindicais a uma paralisação de duas horas, que se repete este ano..A CGTP poderia, se estivesse interessada, fazer a sua própria programação, ter a iniciativa, não? "Bem sabemos que tem um enquadramento internacional, mas não podemos decidir pelos trabalhadores porque estes têm de decidir não receber um dia de trabalho. Para haver uma adesão da CGTP tem de ser um processo atempado - da forma como este processo decorreu não temos condições para lançar um pré-aviso. Mas não estamos parados a olhar, temos muitas iniciativas. E não podemos chegar a tudo: nesta semana que tem três dias e foi cortada pelo Carnaval estivemos em 1227 locais de trabalho. E este ano é talvez aquele em que a CGTP tem uma agenda mais extensa e densa."."Os olhos das mulheres brilhavam nos plenários"."Fico muito triste com a atitude das centrais sindicais. Eu e o meu sindicato e os outros quatro que aderiram à greve. Na CGTP o que nos disseram é que ainda não chegaram a este ponto... Que existem lutas mais importantes antes desta. A do salário, dos tempos de trabalho. Mas o que achamos é que as centrais têm de se interessar pelas questões das mulheres, raciais, LGBT. As taxas de sindicalizados estão a descer porque as pessoas não se sentem representadas. Olham para as direções e só veem homens de meia idade brancos. Pelo desculpa por dizer isto, é chato, mas é a verdade.".Quem fala é Rebeca Moore, 27 anos, porta-voz do STCC (Sindicato dos Trabalhadores de Call-Center) para o assunto da greve feminista. "Nos plenários que fizemos para falar da greve vi os olhos das mulheres a brilhar quando abordámos questões de que os sindicatos nunca falam." Exemplos? "O aumento do tempo de licença de parentalidade e a partilha obrigatória entre os dois progenitores. Devia ser uma exigência das centrais sindicais.".Licenciada e mestre em Arqueologia - di-lo com uma gargalhada, dada o tipo de trabalho que faz - Rebeca anima-se ao falar da recetividade à proposta da greve. Mais mulheres ou 50/50? "Apareceram mais mulheres nos plenários, é verdade. E perguntaram-nos muito se o pré-aviso era para mulheres. Claro que é para todos." Quanto à expectativa para a paralisação, sendo o seu sindicato o mais pequeno do setor, com apenas 600 associados dos 83 mil trabalhadores que se estima existirem nos call centers, suspira. "Veremos. Uma coisa sei: não faz sentido haver tantas manifestações. A Rede 8 de março convocou desde o início as manifs para este dia. Depois apareceram manifestações também a 9 de março." Trata-se das iniciativas do MDM (Movimento Democrático das Mulheres, ligado ao PCP) e o Nós por Elas, convocado em várias cidades em homenagem às vítimas de violência doméstica e de género. "Devia haver só uma grande manifestação", lamenta Rebeca..Os outros sindicatos que fizeram pré-aviso são o já citado SNESUP (Sindicato Nacional do Ensino Superior), o STSSS (Sindicato dos Trabalhadores de Saúde, Solidariedade e Segurança Social), o STOP (Sindicato de todos os Professores), e o SIEAP (Sindicato das Indústrias, Energia, Serviços e Águas de Portugal).."Acho muito bem mas têm de fazer o jantar".Este último, como o STCC, é um sindicato pequeno -- terá entre 650 e 660 associados, de acordo com Rita Penim, 41 anos, que apesar de não ser dirigente está, como administrativa, a fazer a comunicação desta iniciativa. "Os nossos associados são sobretudo da área industrial e fabril. Temos a área da energia e eletrónica e metalomecânica e temos também logística e apoio de limpeza. Temos mais homens que mulheres; o setor da energia é mais masculino e no setor da eletrónica temos mais mulheres. Decidimos aderir à greve feminista porque estamos de acordo com o objetivo do movimento 8-M. Existem ainda muitas penalizações para as mulheres na área laboral. Na área da eletrónica a maior parte das promoções e chefias são entregues aos colegas - e as mulheres acham natural que assim seja e não questionam. E há desigualdade salarial ainda, apesar de ilegal. A nível dos serviços e na metalomecânica há diferenças de salários grandes mesmo em relação a homens e mulheres que estão na mesma linha a fazer exatamente o mesmo.".Numa área com estas características, a adesão masculina à greve feminista está longe de entusiástica. "Não vemos grande interesse dos homens. É o machismo que está muito entranhado na sociedade mesmo nos dias que correm, mesmo na geração dos 30, 40 anos. Não vale a pena esconder essa realidade. Dizem: "Eu acho muito bem a greve e a manifestação mas é preciso que elas cheguem a casa a horas para fazer o jantar. Há operárias que dizem que os maridos concordam mas que elas têm de sair mais cedo da manif para irem buscar os miúdos porque eles nem neste dia se disponibilizam.".Rita reforça a ironia: "Somos de acordo, somos muito modernos mas vê se chegas a tempo a casa para fazer o jantar e se vais buscar os miúdos e entregas o carro porque tenho de ir não sei onde." Mesmo os nossos dirigentes sindicais não estão a informar assim tanto as colegas nos locais de trabalho. Não estão sequer disponíveis para. Aliás, foram muito poucos os sindicatos que fizeram pré-aviso e isso é revelador.".Apesar da perspetiva realista, Rita não desarma; fala com o DN pouco antes de um plenário numa grande empresa, a Visteon, em Palmela. "Tem um peso significativo de mulheres. Vamos levar lá a professora Raquel Varela." Que vão dizer para mobilizar para a greve? "Vamos dizer às mulheres que têm de valorizar a sua presença no mercado de trabalho, demonstrar que se se retirassem isto abanava a sério. E que além dessa participação ainda somos cuidadoras, que temos uma grande participação ao nível da economia social. Vamos ver como reagem."."Isto diz respeito a toda a gente".Com o décuplo dos associados destes outros dois sindicatos, o Sindicato Nacional do Ensino Superior é o maior da sua área e, explica a vice-presidente, Mariana Alves, o único nacional que agrega professores e investigadores. "A questão da igualdade de género está no nosso programa. E o nosso setor é daqueles onde existem mais assimetrias, com uma participação muito diminuta das mulheres nas categorias mais elevadas da carreira. Apenas três universidades têm uma reitora e nos 17 politécnicos só há uma presidente. É esmagador." Prossegue: "Fizemos um levantamento que inclui os vice-reitores e só há 25% de mulheres em média. É impressionante.".Tanto mais impressionante, vinca a dirigente sindical, "quando desde os anos 1990 há uma maioria de mulheres licenciadas e doutoradas. Temos aliás uma média de doutoradas muito acima da da OCDE." E há, diz, também outros aspetos no mercado de trabalho e da ciência. O da precariedade, por exemplo - e as mulheres estão em maior número nos precários." Daí que considere "muito importante aderir a esta greve para dar visibilidade a estas assimetrias. É uma pena que as centrais sindicais não tenham aderido, porque achamos que isto está para lá das questões laborais, extravasa o mercado de trabalho. Mas esperamos uma franca adesão, mesmo se neste setor a adesão às greves é sempre modesta.".Certo é que ao apelo do DN no Twitter o único homem a responder é precisamente um cientista. Rui Curado, conimbricense, investigador em Física, 47 anos: "Adiro porque é um assunto a que sou sensível. E que diz respeito a toda a gente apesar de se concentrar no género feminino. Há toda uma cultura enraizada no nosso país e contra a qual me bato.".Uma cultura de plural masculino; talvez por isso, decerto por isso, o manifesto da greve assume-o feminino: "Todas estamos convocadas para a Greve Feminista. Todas temos mil e uma razões para protestar, parar, reivindicar. Fazemos Greve porque não nos resignamos perante a desigualdade, a violência machista e o conservadorismo. Fazemos Greve para mostrarmos que as mulheres são a base de sustentação das sociedades"; "Vivas, livres e unidas! Se as mulheres param, o mundo pára!".A ver. Afinal, o 8 de março é a data que celebra as manifestações e greves de mulheres por melhores condições de trabalho, igualdade salarial e direitos cívicos - a começar pelo de voto - que se iniciaram há mais de um século. É essa a tradição deste dia: a da luta, não a das flores.