Sonhos de vida antes da morte

Conhecer os bisnetos, trabalhar até ao fim, celebrar 100 anos... Esta é uma viagem às ambições de 11 figuras marcantes da sociedade portuguesa que contaram à nm o que querem mesmo ver realizado antes de morrer.<br /><br />
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«Não hei-de morrer sem fazer isto...» A frase dita assim desta forma não tem propriamente um autor. É de todos os seres humanos. Dos pobres e dos ricos. Dos saudáveis e dos enfermos. De todos aqueles que olham para a morte e projectam um desejo de vida. Mil sonhos tornam-se exequíveis, sejam eles simples ou complicados na aparência. Não faltam ideias.
Há um par de meses, durante uma conferência internacional sobre a sida, Bill Clinton, antigo presidente dos Estados Unidos, revelou ao mundo que antes de morrer gostava de subir ao cume do Kilimanjaro - a montanha mais alta de África, na Tanzânia -, correr uma maratona, conhecer os netos e constatar que as crianças de hoje, num futuro não muito distante, poderão realizar os seus sonhos.
Clinton inspirou o seu discurso num filme - Nunca É Tarde demais - no qual os consagrados Morgan Freeman e Jack Nicholson interpretam o papel de dois doentes terminais que embarcam numa viagem de sonho para concretizar uma lista de desejos. Na película, os dois actores fazem coisas tão díspares como tatuar as mãos, trepar às pirâmides do Egipto ou andar de moto na Grande Muralha da China.
No filme da vida há outras histórias para contar. Em vésperas do Dia de Finados, que se celebra esta terça-feira, fomos à procura delas, desafiando algumas das personalidades mais marcantes da sociedade portuguesa a revelarem quais são as suas grandes ambições antes de morrerem.
Houve quem sorrisse perante a proposta. Houve quem negasse uma resposta, por considerar que a pergunta -  «que desejo gostava de ver cumprido antes de chegar ao fim da vida?» - invadia a esfera da intimidade. Mas houve, também, muitas respostas.
Da ambição simples de conhecer Florença e Praga, manifestada por Eunice Muñoz, ao desejo mais complexo de Almeida Santos de ver o mundo globalizado; passando pelo humor mordaz de Herman José e pelo lirismo de Miguel Veiga (um dos fundadores do PSD). São 11 testemunhos, 11 sonhos, 11 formas de encarar a morte. Conheça-as.


Almeida Santos, político
Globalização até ao fim

Tem 84 anos e um passado político extraordinário. Almeida Santos foi ministro em vários governos - quer provisórios quer constitucionais -, desempenhou papel preponderante em duas revisões constitucionais, foi presidente da Assembleia da República, ocupa a título honorário o cargo de presidente do Partido Socialista, pelo qual foi também candidato a primeiro-ministro. É, há muito, defensor convicto da globalização, como é notório na sua obra, composta por mais de duas dezenas de publicações, entre as quais se contam ensaios jurídicos. Sê-lo-á até morrer, como fica expresso na resposta escrita que nos enviou. «Gostava de não morrer sem ter sido cumprido o meu desejo de à globalização económica, tecnológica e comunicacional se somar, e na medida necessária sobrepor, a globalização política, social, fiscal e militar», defende Almeida Santos. «Sem isso», prossegue, «o mundo continuará em desequilíbrio, traduzido em crises económicas, financeiras e outras, cíclicas e cada vez mais graves, que nos aproximarão do ponto de impossível recuo».

Miguel Veiga, advogado
Adie-se a morte...

«Tenho uma ideia pacífica da morte. Consigo antecipar a saudade que vou ter de viver.» Miguel Veiga, advogado de 74 anos, fundador do PSD ao lado de Francisco Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Magalhães Mota e outros, portuense de corpo e alma, fala de saudade. E responde com um toque de humor ao desafio lançado pela nm de revelar o desejo que quer ver realizado antes de partir. «Como advogado, agendado de julgamento em julgamento, também por aqui o meu desejo imediato é o adiamento...», começa por dizer, com alguma irreverência. «Quando eu me for de partida (bem contra a minha vontade), gostaria de levar nos olhos a luz do mar da Foz (as minhas raízes da terra estão nesse mar), atravessada por duas ou três gaivotas, como um dia deixou dito o imortal Eugénio de Andrade», prossegue. «E, depois, agora com Sophia [de Mello Breyner Andresen], voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar», finaliza, citando duas das maiores referências literárias do país e do Porto, cidade a que associa um «sentimento de pertença», como ficou expresso em 2007, quando foi agraciado com a Medalha Municipal de Mérito.

Ruy de Carvalho, actor
Haja perdão e paz

«Viver intensamente» é, para Ruy de Carvalho, um dos segredos para fintar a morte. E, aos 83 anos, reconhecido como um dos maiores actores portugueses de todos os tempos, diz ter uma «óptima relação com a ideia de morrer». Aprendeu a lidar com ela no palco da vida. «Não tenho qualquer receio do fim. Quando as pessoas de idade mais avançada, como eu, olham para trás e chegam à conclusão de que tiveram uma vida boa, analisam a morte de uma forma diferente, mais serena», diz. Talvez por isso Ruy de Carvalho não tenha um desejo estritamente pessoal para realizar antes de fechar os olhos. Revela, sim, um sonho para a humanidade. «Com a idade que tenho, sinto uma grande amargura pelo facto de poder partir sem que o ser humano encontre a paz e o verdadeiro sentido da vida. Aqui e ali, vai havendo algumas compensações para este estado de tristeza, como o milagre que aconteceu com os mineiros do Chile. Mas esses sinais ainda não são suficientes para perdoar aquilo que os homens fazem uns aos outros.» É justamente esse perdão que Ruy de Carvalho entende como essencial. «Que os homens encontrem a paz e, já agora, que o teatro em Portugal seja sempre uma realidade esplendorosa.»

Eunice Muñoz, actriz
Florença, meu amor

Cidade berço do Renascimento italiano; terra natal de Dante, autor da Divina Comédia; cenário inspirador de obras de artistas como Michelangelo, Da Vinci, Giotto, Botticelli ou Donatello; Florença exerce sobre Eunice Muñoz um fascínio tão grande e tão belo quanto os próprios monumentos que a tornam mágica. «Não gostava de morrer sem ir a Florença, uma cidade tão maravilhosa e ligada à arte. Há muito que este sonho me preenche o imaginário. E Praga... Também queria muito conhecer Praga. Já podia ter ido a estes sítios, mas não sou aventureira, sou mulher de me agarrar mais à família», confessa a actriz de 82 anos. Duas viagens de sonho não são, no entanto, os únicos objectivos que gostava de concretizar antes de morrer. Os seus desejos são de mãe, avó, bisavó. «Quando me pergunta que sonho tenho para concretizar até ao fim da minha vida, o que me salta imediatamente à cabeça é o desejo ardente de saber que a minha família fica bem quando eu partir. Quero que os meus filhos, netos e bisnetos possam seguir o seu caminho sempre com saúde», diz Eunice Muñoz, que olha de frente para a morte, com um sorriso... «Tenho muita fé, e isso ajuda-me a encarar a morte de uma forma mais fácil. A fé retira-lhe carga negativa.»

António Victorino de Almeida, maestro e compositor
Uma vida em disco

É compositor, pianista, escritor, esporadicamente faz programas de televisão, tem uma obra colossal, mas o público habituou-se a tratá-lo por maestro, simplesmente maestro António Victorino de Almeida. Tem 70 anos e compôs a sua primeira obra aos 5. O menino-prodígio de então transformou-se, com o tempo, numa referência. Tão marcante quanto o pragmatismo com que encara a morte, um tema relativamente ao qual, garante, não concede muito tempo. «Francamente não é coisa sobre a qual me debruce. Não tenho qualquer recordação anterior à vida, portanto é natural que não pense sobre a morte ou me sinta assustado com ela.» É simples, portanto, a forma como analisa o fim da própria existência. É simples, também, o desejo que quer ver cumprido até morrer, e que terá o condão de perpetuar a sua obra enquanto génio da música clássica em Portugal. «Gostava muito que todas as peças que escrevi fossem gravadas em disco, porque aquilo que não está em disco é quase como se não existisse. Penso que esta resposta, a manifestação deste objectivo, é comum a qualquer compositor», frisou António Victorino de Almeida.

Pedro Abrunhosa, músico
Palavras para o passado

Do álbum Longe, o último que lançou, Pedro Abrunhosa disse, em entrevista recente, ser uma obra em que refaz as pazes com a vida ou com a morte. Dono de uma extraordinária formação musical e de uma carreira que já o levou aos quatro cantos do planeta, autor de alguns dos álbuns mais vendidos da história da discografia portuguesa, o compositor e pianista nascido no Porto, a 20 de Dezembro de 1960, não destaca apenas um desejo que pretende ver cumprido até ao fim da vida. Quer muito mais do que isso. «Que se celebrem mais os vivos do que os mortos. Que se cumpram todos os objectivos do milénio. Que corrupção, incompetência e mediocridade passem a ser palavras de passado. Que haja mais música do que ruído», disse Pedro Abrunhosa, em depoimento escrito que enviou à nm. «Que se calem as loas daqueles que em vida semearam a ignorância», finalizou.

José Luís Peixoto, escritor
Venham os... bisnetos

Morreste-me. A obra de José Luís Peixoto, editada pelo próprio em 2000, e na qual retrata a morte e as recordações que tem do pai, torna evidente a relação que o escritor tem com a ideia do desaparecimento físico. «A morte faz parte da própria natureza e não tem de ser encarada de forma negativa. É uma condição da própria vida», explica o autor, de 36 anos, um dos expoentes da nova geração de escritores portugueses. «Perceber e aceitar que há um limite no tempo que temos traz mudanças na forma como encaramos o dia-a-dia», prossegue. São essas mudanças que lhe moldam também o sonho que gostava de realizar antes de morrer: «Conhecer os meus bisnetos.» A explicação é simples. E marcada, mais uma vez, pelo tempo. «Tenho um filho com quase 14 anos e, daqui a tempos, e pela ordem natural das coisas, conhecerei os meus netos. Outros 14 e mais outros passarão rapidamente. E este desejo que tenho vai crescendo com esse tempo. No fundo, a possibilidade de conhecer os meus bisnetos não é mais que uma forma de perceber como será o mundo depois de eu deixar de existir», concluiu José Luís Peixoto.

José Eduardo Pinto da Costa, médico legista
Viver para morrer em paz

A morte é, para o professor Pinto da Costa, um modo de vida. Literalmente. Não apenas por ser médico legista. «Tenho uma relação perfeitamente pacífica com a morte. O contacto habitual com ela, no meu dia-a-dia, no meu trabalho, funciona quase como um mecanismo de rejeição e realça o prazer enorme de estar vivo. Quando morremos fisicamente, continuamos a viver através daquilo que fizemos em vida, na memória dos outros», sublinha José Eduardo Pinto da Costa, de 76 anos, professor jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. É esse prazer de que fala que sustenta o seu maior desejo, o de «viver para conseguir morrer em paz». Uma ideia que construiu «há muito» na sua mente, e que se traduz em todos os momentos. «Agradeço diariamente por estar vivo e posso garantir que vivo intensamente, como se cada dia fosse o último da minha existência.» Não é teoria, é antes uma «forma de estar». «Ao viver assim, consigo usufruiu melhor das coisas que normalmente passam despercebidas à maior parte das pessoas, simplesmente por falta de reflexão», acrescenta o médico legista. «A melhor coisa que há na vida é... viver.» Nada mais simples...

Joe Berardo, empresário
Justiça sobre os especuladores

Empresário e coleccionador de arte, dono da nona maior fortuna de Portugal - avaliada recentemente em cerca de 589 milhões de euros -, José Manuel Rodrigues Berardo, mais conhecido por Joe, aceita a ideia de morrer como algo de inevitável, algo que «faz parte da própria condição de estar vivo». Aos 66 anos, garante que não pensa na morte, mas admite que possa haver uma outra vida para lá da fronteira desta sua existência, «ainda que não na mesma forma física», já que a vida é, no seu entendimento, «uma fusão de muitas coisas». Sorriu quando lhe perguntámos que desejo gostava de ver cumprido antes de morrer. «Nunca me perguntaram isso...» Pediu um dia para meditar sobre o assunto. E ao responder não nomeou um luxo - que a esse nível estará servido. Manifestou um desejo difícil de concretizar... «Gostava que, até ao dia da minha morte, o mundo fizesse justiça sobre aquela que é a maior manipulação e roubo à humanidade, ou seja, justiça sobre os especuladores, pessoas sem responsabilidades sociais, que fazem manipulações de moeda e matéria-prima a nível global, levando à bancarrota países inteiros», disse Joe Berardo.

Fátima Lopes, estilista
Mais e melhor moda

Gosta de viver, gosta de viajar, gosta sobretudo de trabalhar. Fátima Lopes, 45 anos, uma das mais conceituadas estilistas portuguesas, considera-se «privilegiada e sortuda» por fazer aquilo de que gosta «desde há 18 anos» - criar moda, marcar tendências a nível nacional e internacional. «A sorte dá muito trabalho, mas o trabalho para mim não é uma chatice.» Ousada e irreverente, como a própria se define, não limita o seu raio de acção ao vestuário. Cria também colecções de alta-joalharia, porcelanas, cutelaria, cristais, têxteis para o lar, óculos, canetas, pavimentos e revestimentos. Óbvio, portanto, o desejo que se propõe concretizar até morrer. «Fazer mais e melhor é a história da minha vida. Por isso, não há segredos na minha resposta - quero dar continuidade, em termos profissionais, a tudo aquilo que já consegui realizar, inovando sempre, diversificando cada vez mais», disse Fátima Lopes. Trabalhar será sempre a meta da estilista. Até tarde, muito tarde... «Quero viver, no mínimo, até aos 100 anos. A morte é uma evidência da vida, e não tenho propriamente medo dela», sublinhou.

Herman José, humorista
Cem anos com boa pinta

Herman José não pensa na morte. E diz que não acredita «em nada» quando lhe perguntamos se concebe uma outra vida para lá desta. «Morrer é apenas um final físico. Não tenho um conceito do ser humano além daquilo que ele na realidade é, ou seja, apenas um animal», argumenta. Mas ainda que, aos 56 anos, a ideia de morrer não lhe ocupe o espírito, confessa um desejo que gostava de ver cumprido antes do fim da sua vida. Um desejo expresso, naturalmente, com um toque de boa disposição e irreverência, características próprias de quem é visto por muitos como o maior humorista português de sempre. «Desejo apagar as velas do bolo do meu centésimo aniversário.» O cineasta Manoel de Oliveira, com 102 anos, é obviamente uma referência. Para superar... «Espero chegar aos 100 anos em muito melhores condições do que o Manoel de Oliveira, com melhor aspecto e sem necessitar de bengala para me apoiar», prossegue. E até lá, já que faltam 44 anos para que esse objectivo de vida seja uma realidade, talvez um outro «desejo» seja consumado... «Quem sabe se um dia passam a vender nas farmácias kits de eutanásia para eu oferecer a algumas pessoas que me apetece abater...» Nunca se sabe...

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