O presidente do Conselho Europeu e o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia apontaram o dedo a Ancara e Bruxelas, respetivamente, quanto à responsabilidade pelo incidente diplomático que deixou a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen de pé perante Charles Michel e Recep Tayyip Erdogan na quarta-feira, no início da reunião entre os três no palácio presidencial turco. Se a presidente da Comissão Europeia se remeteu ao silêncio, já os principais blocos políticos no Parlamento Europeu exigiram a presença dos dirigentes de topo da União Europeia para se debater o caso conhecido como SofaGate..Duas cadeiras e uma mulher de pé, a diplomacia segundo Erdogan.A controvérsia também se estendeu à ordem hierárquica entre a presidência do Conselho e a presidência da Comissão, com o antecessor de von der Leyen, Jean-Claude Juncker, a lembrar que era Donald Tusk quem prevalecia no protocolo e que a ordem hierárquica é clara. "Aconteceu comigo sentar-me num sofá", recordou. No entanto, quando foram recebidos em Ancara, ambos ladearam Erdogan..O europeu que se sentou ao lado do presidente turco, Charles Michel, comunicou através do Facebook que tudo se deveu a um "erro" da Turquia que produziu uma "situação constrangedora", devido à "interpretação estrita das regras protocolares, mas que ele e von der Leyen decidiram "não piorar a situação ao fazer uma cena"..Ao que confidencia um diplomata ao Le Point, essa hierarquia não é aceite pela ex-ministra alemã. "É um inferno em todas as cimeiras europeias!", comenta sob anonimato. Como von der Leyen abdicou de levar consigo o seu diretor de protocolo, o francês Nicolas de La Grandville, a situação acabou por se transformar num incidente que terá sido explorado pela equipa de Erdogan, mas que também revela a descoordenação e rivalidades entre as lideranças europeias..Por parte da Turquia, a responsabilidade é em exclusivo da UE: "A distribuição dos lugares foi feita de acordo com a sugestão da UE. Ponto final", declarou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mevlut Cavusoglu. "Não estaríamos a revelar este facto se não tivessem sido feitas acusações contra a Turquia." Perante este passo em falso, os líderes dos grupos populares e socialistas no Parlamento Europeu convocaram os dois dignitários para esclarecerem o ocorrido..A visita de Charles Michel e Ursula von der Leyen tinha como objetivo mostrar uma Europa a uma só voz na defesa da melhoria das relações com a Turquia de Erdogan, tendo como motor uma "agenda positiva". Nesta, Bruxelas compromete-se a rever dossiês como a união aduaneira em troca de passos concretos turcos em deixar para trás iniciativas unilaterais e militaristas, caso das perfurações em águas territoriais europeias..No entanto, a reunião de três horas acabou por ficar para plano secundário, porque na diplomacia o protocolo e o simbolismo continuam a ter a importância de sempre - e a imagem que passou foi a de que Ancara quis dar um sinal de desdém à União Europeia e à dirigente alemã, duas semanas depois de se ter retirado do tratado de prevenção da violência sobre as mulheres, a Convenção de Istambul. Um retrocesso civilizacional que merecera antes e depois do encontro palavras de preocupação por parte de von der Leyen..Os sinais de que a Turquia trilha um caminho diferente da UE foram dados também com o recente processo interposto por um procurador para a ilegalização do terceiro maior partido político, o Partido Democrático dos Povos (HDP), que defende as minorias, em especial a curda; ou a prisão de dez almirantes na reserva após 120 diplomatas reformados e 104 almirantes na reserva terem escrito cartas a criticar o projeto Canal Istambul, uma obra que visa criar uma alternativa aos estreitos do Bósforo e das Dardanelas, que ligam o mar Negro ao Mediterrâneo..Os signatários das cartas, porém, avisam que a concretização desta via marítima de 45 quilómetros pode pôr em causa a Convenção de Montreux, que regulamenta as ligações existentes, e dessa forma pode pôr em causa a soberania turca nas vias navegáveis (e o que não está escrito, pode permitir o livre acesso dos navios da NATO ao Mar Negro onde, por exemplo, a Rússia tem a sua base naval em Sebastopol, na ocupada Crimeia..Erdogan acusou os militares de "golpe político" e entre os detidos está Cem Gurdeniz, o militar da doutrina Pátria Azul, defensora do expansionismo marítimo e uma política de alianças virada para a Rússia e a China em detrimento do Ocidente, defendendo inclusive a saída da NATO e a adesão à Organização para Cooperação de Xangai. Erdogan, porém, quererá continuar a política dual e pragmática da Turquia, até porque, como lembrou von der Leyen em Ancara, a "UE é o parceiro número um da Turquia em importações e exportações" e a economia turca, alavancada em crédito fácil aos empresários da construção civil e uma moeda tão volátil como a paz no Médio Oriente, não se pode dar ao luxo de permanecer num braço-de-ferro com a UE e os Estados Unidos..cesar.avo@dn.pt