Sócrates: "Uma oportunidade para repor a verdade"
José Sócrates chegou ao Tribunal Central de Instrução Criminal ao início da tarde desta segunda-feira, o primeiro dos quatro dias que o juiz Ivo Rosa reservou para ouvir o antigo primeiro-ministro. Aos jornalistas, Sócrates, principal arguido na Operação Marquês, disse que esta é "uma oportunidade para repor a verdade".
O ex-governante começa a ser interrogado quase cinco anos após ter sido detido por suspeitas de branqueamento de capitais, corrupção, fraude fiscal e falsificação de documentos.
No requerimento de abertura da fase de instrução, José Sócrates reitera que "não cometeu qualquer crime, nem praticou os factos narrados na acusação, muitos dos quais nunca sequer ocorreram" e considera que isso está "exuberantemente demonstrado nos autos".
O ex-primeiro-ministro socialista será o penúltimo arguido a ser interrogado nesta fase, estando previsto que o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva preste declarações a 27 de novembro.
A fase de instrução do processo Operação Marquês começou também a uma segunda-feira, mas no início de janeiro de 2019, e envolve 28 arguidos - 19 pessoas e nove empresas. As datas do debate instrutório também já estão marcadas: arranca a 27 de janeiro de 2020 e termina no dia 31, no Campus de Justiça de Lisboa. Vários dias justificados pelo juiz da seguinte forma: "Considerando a complexidade do processo, a dimensão da acusação e dos requerimentos de abertura de instrução, as inúmeras questões jurídicas e o número de sujeitos processuais envolvidos, é previsível que o debate se prolongue por mais de uma sessão."
A Operação Marquês teve início a 19 de julho de 2013 e culminou na acusação a 28 arguidos - 19 pessoas e nove empresas - a 11 de outubro de 2017 pela prática de 188 de crimes económico-financeiros.
José Sócrates está acusado pelo Ministério Público (MP) de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 crimes de branqueamento de capitais, nove crimes de falsificação de documento e três crimes de fraude fiscal qualificada, no âmbito da Operação Marquês. No total, o antigo primeiro-ministro, que já esteve preso preventivamente e em prisão domiciliária, está acusado de 31 crimes económico-financeiros.
O processo Operação Marquês, cuja existência foi conhecida em novembro de 2014, resultou numa acusação com mais de quatro mil páginas, 134 volumes, mais de 500 apensos e registos de mais de 180 buscas e interceções telefónicas. No total, ultrapassa as 53 mil páginas de papel, espalhadas por duas salas do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Entre outros pontos, a acusação sustenta que Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimentos a interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santo e na PT, bem como por garantir a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e por favorecer negócios do Grupo Lena.
No pedido de abertura de instrução, os advogados de José Sócrates - João Araújo e Pedro Delille - foram bastante críticos com a atuação do juiz Carlos Alexandre, o magistrado da fase de inquérito, acusando-o de ter permitido e promovido "a devassa e intrusão permanente da vida pública e privada, profissional, familiar e até íntima do arguido, durante anos - através da manutenção da investigação para lá de todos os prazo e limites razoáveis e aceitáveis, autorizando e fazendo executar interceções telefónicas, escutas ambientais e outras gravações de som e imagem, buscas, apreensões e varejos vários, a detenção-espetáculo e a prisão preventiva para investigar, como prova e presunção de culpa e instrumento de retaliação pessoal, a própria dedução de acusação ou acusações, não obstante a absoluta inexistência de indícios que as justificassem ou fundamentassem e tudo sempre em manifesto desrespeito dos requisitos legais".
No requerimento de abertura da fase de instrução, a que o DN teve acesso, a defesa nega em termos genéricos todos os factos da acusação, e os advogados do antigo primeiro-ministro acusam a atribuição do processo a Carlos Alexandre de ter sido fruto de "manipulação e viciação" - por não ter sido realizado nenhum sorteio nem ter sido respeitada a "necessária aleatoriedade", como se lê no documento.
"Os autos de quebra de sigilo bancário (...) quer durante o inquérito (...) quer das escutas telefónicas migradas de outro processo (Monte Branco), quer as autorizadas nos presentes autos, quer os demais meios de investigação, sugeridos pelo OPC [Órgãos de Polícia Criminal], sem competência legal para tal, ao MP e por este promovidas ou decretadas com fundamento aduzido por aquele, constituem atos restritivos (...) de direitos, liberdades e garantias fundamentais, nomeadamente da reserva da intimidade e da privacidade (...), além de outros direitos fundamentais (...)", sustenta a defesa.
Os advogados de Sócrates arrasam a investigação, argumentando que não existiu consentimento para a obtenção de prova, no caso, por exemplo, das escutas telefónicas. Em causa está a obtenção "de partes selecionadas de escutas obtidas noutro processo sem que o arguido no processo de destino possa conhecer a integralidade do conteúdo das mesmas e do próprio processo de origem" - alega a defesa de José Sócrates, que diz ser inconstitucional a interpretação normativa do artigo que permitiu à investigação obter essas provas.
"Constituindo os PA [Procedimentos Administrativos, no âmbito da investigação criminal], tal como a quebra de sigilo bancário no âmbito do presente processo, as escutas (migradas do processo Monte Branco) e autorizadas no processo Marquês, a localização celular, o varrimento eletrónico e a recolha de imagem, prova proibida, não restou nos autos qualquer outra prova subsequente que não tenha ficado contaminada com esta proibição" - sustentam Araújo e Delille: "São os PA, que constituíram materialmente investigação, a génese do presente processo, sem os quais não se teria sequer iniciado os presentes autos."
"A acusação nunca teria sido deduzida se expurgarmos a mesma de todas as provas proibidas", resume a defesa. Tendo em conta as nulidades, proibições de prova e inconstitucionalidades invocadas, os advogados do ex-primeiro-ministro vão pedir que seja declarada a insustentabilidade da acusação e o despacho de não pronúncia, ou seja, para que o caso caia e José Sócrates não chegue sequer a ser julgado.
José Sócrates está acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político - com penas previstas de um a oito anos de prisão -, 16 crimes de branqueamento de capitais (as penas de prisão previstas no Código de Processo Penal variam entre o mínimo de seis meses e até um máximo de 12 anos), de nove crimes de falsificação de documento e três crimes de fraude fiscal qualificada (pode ser punido com multa até 360 dias ou pena de prisão até três anos).