Quatro desempregados em aventuras no polo Sul sem sair do sótão
Slupianek tem a palavra "punk" tatuada nos dedos da mão. O cabelo apanhado num carrapito, a barba comprida, blusão de ganga e calças de fato de treino. Slupianek tem um pombal que herdou do pai. Conhece as pombas pelo arrulhar e chama-as pelo nome. Slupianek não tem emprego e por isso gasta os dias em "flippers e copos e andar pendurado por aí", muitas vezes com o seu grupo de amigos desocupados no sótão de um deles, jogando conversa fora. Até que, um dia, um deles não suporta mais esta vida sem objetivos e tenta suicidar-se. Os amigos unem-se na tarefa de salvá-lo e é Slupianek que tem a ideia: "Ando a ler um livro sobre a conquista do Polo Sul. E se nós recriássemos essa viagem?" E é assim que estes quatro amigos partem à aventura, sem sair do sótão de Braukmann.
A Conquista do Polo Sul é um texto escrito pelo dramaturgo alemão Manfred Karge em 1986. "O texto é intemporal", diz a encenadora Beatriz Batarda. O desemprego, a ausência de objetivos, o desencantamento, "esta sensação de vivermos num beco sem saída" é algo que, infelizmente, parece estar na ordem do dia. "Para uma das personagens a morte parece ser o único caminho para a libertação." E, depois, este agarrar, "como quem agarra uma boia de salvação, a ilusão, o teatro, através da recriação desta conquista do Polo Sul." A primeira expedição a alcançar o Polo Sul foi liderada pelo explorador Roald Amundsen que, com mais quatro membros da equipa, atingiu o seu objetivo a 14 de dezembro de 1911. Várias outras equipas de muitas outras nacionalidades já o tinham tentado, uns voltando para trás, outros ficando pelo caminho, mas, de repente, Amundsen, leva os homens e os cães para o Sul, é o primeiro a chegar lá. "É uma história magnífica de vitória, de superação da natureza e de nós próprios, contra todas as adversidades e dificuldades", diz Batarda.
E é essa aventura que fascina aquele grupo de amigos que transformam os lençóis brancos estendidos na corda em maciços gelados, que decidem assaltar uma loja de artigos para a neve para se equiparem a preceito, que sentem o medo que sentiram os verdadeiros exploradores, que se encolhem uns nos outros para ter menos frio, que sentem a dor de matar alguns dos animais para terem com que se alimentar e que, entre uma página e outra, vão ultrapassando os dias sem pensar muito na falta de emprego. Mesmo que isso implique discussões, traições e até deserções e mudanças de rumo.
"Na verdade a peça é sobre como as personagens são salvas pela ficção", explica o ator Nuno Lopes. "Eles apostam numa ficção que têm a ver com eles. Eles também estão a atravessar um deserto gelado - e para eles aqueles exploradores são uns heróis, uns tipos muito duros."
"Naqueles dias eles passam a ser alguém, a ter uma personagem, um destino, coisa que na vida real não têm", acrescenta Bruno Nogueira, que interpreta o aventureiro Slupianek. "O desemprego é um tema muito presente e muito atual. Quem está a passar por isso precisa de um ponto de fuga qualquer. Mas é um fugir que não resolve o problema, é um entretenimento durante algum tempo mas depois volta-se ao vazio."
Batarda vai ainda mais longe. Para além da história da viagem e da história daquele grupo de amigos, há aqui um "terceiro espetáculo", - que é o que lhe interessa mesmo - "que é o enorme elogio ao teatro, à transformação, à construção e desconstrução da ilusão, ao longo de todo o espetáculo, quer quando eles passam de personagem para personagem, até ao final quando de certa maneira abandonam as personagens e acabam por falar deles, atores, numa vida muito difícil, precária, que exige uma entrega total, uma paixão, mas também uma capacidade atlética, não só física mas também intelectual num país onde a cultura é tratada como lixo."
À Conquista do polo sul
De Manfred Karge
Encenação de Beatriz Batarda
Com Ana Brandão, Bruno Nogueira, Flávia Gusmão, Miguel Damião, Nuno Lopes, Nuno Nunes e Romeu Costa
Teatro São Luiz, Lisboa. Até dia 24.
12 euro/15 euro