Sobre cultura, de novo
Volto hoje às políticas de cultura, porque o assunto não é marginal nem secundário. A cultura, o seu legado, agentes e instituições, não são acessórios de projetos políticos ou adereços reputacionais. Pensar de forma sustentável a gestão da cultura da perspetiva da decisão política implica deixar de olhar para o setor como instrumento, mas pensá-lo como estratégia para o país. Usando o termo feliz de Raymond Williams, cultura define-se como a estrutura de sentimento de uma sociedade, um povo ou conjunto de povos. E é por definição um projeto cosmopolita de abertura ao mundo, que encerra em si um lastro que transborda a sua própria auto definição. Cultura implica sempre o seu plural, a diversidade rica das culturas.
Ao congregar uma dimensão material com um lastro e impacto intangíveis que ultrapassa indivíduos, coletivos, sociedades e nações, o setor cultural torna-se particularmente apetecível para intervenções de microgestão política. Quem dominar a cultura, domina a estrutura de sentimento, logo a perceção sobre a realidade, a orientação do modelo de desenvolvimento.
Na agenda das eleições que se aproximam, o tema da cultura vai ganhar proeminência. Os efeitos da pandemia sobre o setor e as críticas à ação do Ministério que a tutela juntaram e forma improvável as forças de esquerda e de direita. A esquerda, que se apresenta como tradicional defensora do setor e dos seus agentes, colocou já o tema na agenda da campanha. A defesa da "democracia cultural" por Jerónimo de Sousa não deixa de ser irónica, porque o controlo férreo sobre a expressão artística que o legado comunista e os atuais representantes da ideologia, como a China, demonstram, é tudo menos legitimador de uma prática de criação livre e democrática. Por sua vez, a direita, que olha a cultura numa lógica sobretudo de ilustração individual e que está tradicionalmente alheada de uma agenda mais estruturante do setor, exceto para orientar políticas de preservação ou, mais recentemente, apoiar organizações comunitárias de proximidade, irá colocar certamente as políticas culturais no seu programa. Rui Rio já sentiu necessidade de começar a combater a narrativa do seu antagonismo ao setor. Ao lado da saúde, da educação e da economia, a cultura está a emergir como uma das questões da agenda política eleitoral.
Interessa, justamente por isso, salientar três aspetos essenciais ao desenvolvimento de políticas culturais sustentáveis. Resumo-as no programa dos três Ps: Preservação/Produção/Promoção. E para tal é necessária clareza sobre como se financia, como se selecionam prioridades e como se trabalha o alargamento do acesso à cultura. Para prevenir as tentações de controlo, o Ministério da Cultura deve claramente apresentar-se como um mediador honesto que gere financiamento de base estatal, facilitando medidas - sobretudo de natureza fiscal - que suscitem e incentivem uma maior intervenção de atores privados no apoio às artes e às instituições. O apoio do Estado à conservação e preservação do enorme património artístico de Portugal é determinante para a auto-consciência, necessariamente reflexiva e crítica, do país sobre o seu passado e a forma como projeta o futuro. Do mesmo modo, o apoio à produção e criação artísticas é estruturante da ação de promoção da atividade cultural que o Estado deve cultivar, mas sem criar dependências dos projetos artísticos face às linhas de financiamento. Atividade artística que sobrevive apenas por se adaptar às oportunidades de financiamento públicas, não é criação, mas recurso. Finalmente, é determinante para a afirmação e a projeção da imagem do país, melhorar a educação de públicos e o acesso da população aos bens culturais. Promover e trabalhar o alargamento do acesso com os agentes locais, os municípios, incentivar a educação artística e projetar o país não apenas como centro de oportunidade económica e de inovação tecnológica, mas como hub criativo, exige educar para a cultura. No difícil jogo de escolhas, a prioridade, e a opção mais difícil, é justamente combater a tentação do populismo cultural e incentivar o trabalho consistente e permanente de novos públicos. Se fosse fácil, já estaria feito.
Reitora Univ. Católica Portuguesa