O apelo da campanha "Declare Covid-19 Vaccine a Global Common Good Now" já foi assinado por personalidades como Desmond Tutu, Mikhail Gorbachev, Malala Yousafzai, Bono, Richard Branson, Lech Walesa, Lula, George Clooney, Sharon Stone, Shirin Ebadi, José Ramos-Horta. E tantos outros. Mais de uma centena de personalidades, à hora do fecho desta edição, em Dia Mandela, celebrado pela Academia Ubuntu, que nos leva ao encontro de Muhammad Yunus..Professor Yunus, num mundo cheio de laços estreitos entre grandes empresas e governos, pensa que a comunidade mundial pode realmente comprometer-se com a ideia de vacinas covid-19 livres de interesses comerciais? Estamos a tentar. Esse é o apelo que lançámos, agora já assinado por 140 pessoas e cerca de 30 delas são laureadas com o Nobel. Portanto, esta é uma boa maneira de o fazer, no sentido de considerarmos a vacina como um bem comum global, mas há boas razões pelas quais isso deve ser feito. Acho que, em primeiro lugar, se houver uma propriedade comercial sobre a vacina, toda a vacina será administrada de maneira completamente diferente, tudo focado na maximização do lucro e entregue à melhor oferta. Portanto, a maior parte da população do mundo já estará a perder e o processo ainda não começou. Os EUA estão, embora agressivamente, a comprar apenas futuras vacinas. Já investiram 1,6 biliões de dólares para que seja uma empresa americana a fornecer cem milhões de doses e o seu objetivo é comprar 300 milhões. Estão a comprar à Sanofi a maior parte da produção imediata que eles terão. O Reino Unido também assinou com a Glaxo Smith Kline para fornecer 50 milhões de vacinas apenas ao Reino Unido. Uma empresa que trabalha com a Universidade de Oxford já anunciou que produzirão vacinas para a Europa primeiro. O foco parece estar apenas em cada país ou grupo de países, as pessoas não falam na comunidade mundial como um todo. Há um profundo sentido de indisponibilidade de vacinas para uma vasta parte do mundo. As pessoas pobres, de rendimentos médios e baixos, não serão capazes de aceder a essas vacinas. Depois, há o risco de termos grandes negócios multibilionários de vacinas falsas nesses países e misturas que serão vendidas nestes mercados dos países mais pobres, alegando que estas são as genuínas e ganhando assim muito dinheiro, enquanto as pessoas sofrem. O que temos de fazer é reunir toda a comunidade mundial e anunciar que a vacina não pertence a ninguém. É um bem comum. Há um precedente nisto que é a vacina da poliomielite que foi declarada vacina do povo, assim lhe chamavam. Portanto, quando estiver disponível nos EUA e na Europa, ao mesmo tempo deverá estar disponível no Bangladesh, na África, na América Latina, onde quer que seja. Deve ser feito simultaneamente e apenas pode ser feito se não estiver na propriedade de alguém. A União Europeia já anunciou que apoia isto, convencerão as empresas a fazê-lo ou adotarão legislação para que isso aconteça. E para que, finalmente, vá à Assembleia Geral da ONU para ser feito um anúncio global que torne a vacina um bem comum global..Se esta campanha não for bem-sucedida, quais podem ser as principais consequências na sua opinião? Espero que tenha sucesso. Não ser bem-sucedida não parece ser uma opção. Se a vacina não estiver disponível para os países da periferia, haverá um grande tráfico de vacinas falsas. Será uma confusão total. Por outro lado, a China já anunciou que todas as suas vacinas, quando forem lançadas (já têm quatro empresas que estão na fase de desenvolvimento; isto é, das oito ou nove que estão na dianteira, quatro são chinesas) serão bem público. E deve ser assim, em vez de ser apenas um ou dois que conseguem a aprovação e que entram no mercado e todos têm de lidar com isso. Portanto, a fase de preparação deve ser iniciada, uma vez que concordemos que deveria estar disponível para produção gratuita, livre de propriedade. Esse é o objetivo final. Caso contrário, ficaremos sem vacina por muitos e muitos anos, porque não se está a proteger parte do mundo. Se não é protegida parte do mundo, o mundo inteiro não é protegido, porque o vírus será espalhado de novo a partir de algum lugar. Esse é o lado perigoso disto tudo..Há aqui também uma dimensão económica nesta proposta? A produção, o fabrico em massa de uma vacina, pode ajudar a compensar a perda de empregos fabris um pouco por todo o mundo? Quanto mais depressa se chegar à vacina, mais depressa se poderá abrir a economia e fazer regressar os negócios e assim por diante. Agora, as pessoas movimentam-se mas com muita relutância, apenas por sobrevivência, sempre com muito medo de que possam apanhar o vírus. Se toda a gente tiver a vacina, sinto-me mais confiante para fazer as coisas que desejo e preciso; portanto, por razões económicas, é algo muito importante. Mas, ao mesmo tempo, precisamos responder à pergunta: devemos voltar ao mesmo mundo de onde viemos ou procurarmos construir um novo? O mundo de onde viemos foi horrível e temos sorte de não precisarmos de voltar para lá. Com o aquecimento global, estávamos a contar dias, semanas e anos para terminar o mundo inteiro para habitação pelos humanos. Então, esse é o tipo de mundo de que estamos à espera? Depois, há toda a concentração de riqueza. Toda a riqueza nas mãos de apenas alguns pode, em breve, provocar uma explosão de raiva. É como se estivéssemos no corredor da morte, a nossa vida prestes a terminar e nós a avançar como se estivéssemos num comboio em direção ao destino final de morte. O coronavírus chegou para parar esse comboio. Hoje, temos uma escolha: devemos continuar neste comboio ou sair dele, salvar-nos dos espíritos da morte, ir para outro lugar onde a morte não será algo que nos persegue? Essa escolha tem de ser feita agora. E a decisão tem de ser não voltar para trás. Ou mudar para um comboio novo, diferente..Como tem vivido estes meses de pandemia? Qual foi o impacto nas suas rotinas e como está a lidar com isso? Bem, como toda a gente, preso dentro da sala na minha casa. Mas também é uma vantagem porque posso falar com as pessoas como estou a falar consigo. A tecnologia abriu essa porta. Não fico sentado a lamentar-me sobre tudo aquilo que nos acontece. Se eu tivesse de visitar Portugal para fazer esta entrevista, teria de viajar. E agora, no mesmo dia, posso falar consigo, daqui a alguns minutos, conversarei com alguém na Austrália e no mesmo dia posso falar com cinco continentes diferentes, sem desperdiçar energia e criar poluição, etc. Sinto que estou mais ativo. Para falar com cinco continentes levaria várias semanas de viagens. Hoje posso fazer a mesma coisa num dia e as pessoas podem assistir, ouvir, ligar de volta. Então, diria que este é um mundo novo. Mas, por outro lado, as pessoas sofrem. O coronavírus fez as pessoas sofrerem tremendamente, especialmente na extremidade inferior do nível de rendimentos e, em países como Bangladesh, Índia e Paquistão, a maioria das pessoas estão nessa situação, num estado muito vulnerável. Perderam todo o seu salário porque os negócios pararam. Não têm qualquer rendimento, já gastaram as suas economias e estarão a vender aquilo que lhes resta como propriedade, seja a casa ou os animais..E as disparidades vão aumentando. Os ricos estão cada vez mais ricos... Absolutamente....Poderíamos dizer que não houve pessoas, bancos e instituições suficientes a seguir ideias como a sua do microcrédito em 2006? Sim. Mencionou 2006, o ano em que ganhámos o Prémio Nobel. Foi um longo caminho, porque desde que começámos no Bangladesh, com o banco Grameen e o microcrédito já passaram 42 anos. E toda a gente adora o projeto. Toda a gente diz que é uma ótima ideia, ajuda especialmente as pessoas pobres, as mulheres pobres. Ninguém prestou atenção às mulheres pobres antes disso. No entanto, depois de todos os elogios e prémios que recebemos, o sistema financeiro não mudou e é a chave para tudo. O sistema hoje está feito para as pessoas que estão no topo, as pessoas que têm 99% da riqueza. A pobreza não é criada pelas pessoas pobres. Se redesenharmos o sistema a pobreza desaparece. As pessoas são tão boas quanto em qualquer lugar, a pessoa pobre que você vê na rua, a pessoa sem teto que você conhece... são tão bons como seres humanos como qualquer outra pessoa. Mas o sistema não funciona para eles, são rejeitados em todos os serviços das instituições que temos. Precisamos de abordar essa questão, é fundamental. Podemos mudar em menos de uma geração, mas temos de começar pela estrutura básica da teoria económica. Pôde certamente ver as imagens de milhões de trabalhadores migrantes na Índia a tentar ir para casa porque não há nada de bom para eles na cidade agora. Já não podem pagar o aluguer dos pequenos buracos em que vivem nessas cidades e estão a sair para sobreviver, voltando para as suas próprias terras. Vimo-los a chegar às autoestradas para fazer a pé o caminho para casa. Mas a casa fica a milhares de quilómetros de distância. Que tipo de economia queremos? A economia deve ser projetada de maneira a que você tenha a sua sobrevivência no local onde nasceu. Não a milhares de quilómetros, deixando a sua família e os seus filhos em casa com negócios incertos e incertezas para si também, constantemente. Porque não podemos fazer as coisas de outro modo? Todo este setor dos trabalhadores migrantes e na rua é conhecido como setor informal... mas este não é um setor informal, essa é uma designação muito negativa, como se eles não valessem nada ou com valor apenas quando chegam ao setor considerado formal. Isso não é verdade. Deveríamos chamar-lhe setor de microempreendedores. Fazem as coisas à sua maneira mas não têm instituições para os apoiar..Diretor-adjunto interino da TSF