SNS IV

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Li, há algumas semanas uma opinião da Directora da revista Visão, Mafalda Anjos, que dizia - " Não faltam médicos em Portugal, faltam sobretudo, sim, os que, por estes dias, queiram ter o Estado como empregador", referindo ainda que "uma pandemia em cima de anos com problemas acumulados fez com que o SNS se tornasse pouco atrativo para trabalhar".

Acho que o problema não tem a ver com a pandemia.

O problema tem sido a forma como se tem olhado para o SNS. Ter o Estado como empregador é uma inevitabilidade, já que para poder prosseguir na carreira e avançar para uma especialidade, em Portugal, é indispensável estar afecto ao serviço público.

Há muitos anos, para um médico ser considerado Especialista (julgo que os actuais responsáveis pela Saúde em Portugal vivenciaram esse período), teria de ter frequentado um tempo definido num hospital central (só os havia nos grandes centros onde haviam também Faculdades de Medicina - Lisboa, Coimbra e Porto), tendo de prestar provas públicas perante um júri de cinco elementos, ficando com o título de Especialista pelos Hospitais. Se queria ser titulado pela Ordem dos Médicos, teria de fazer um outro exame, o "Exame à Ordem", em moldes idênticos, recebendo então o título de Especialista pela Ordem dos Médicos.

Com o alargamento da rede hospitalar pública, os internatos de especialidade foram sendo reconhecidos pela Ordem dos Médicos como válidos, mas mesmo assim, exigindo que fosse o seu (da Ordem) exame a conferir o título de Especialista. A meados dos anos oitenta do Séc. XX, Governo e Ordem concordaram em co-titular os Especialistas saídos dos Hospitais do SNS, com a Ordem a reconhecer como válidos os exames de "saída" do internato da especialidade dos médicos que o tivessem concluído em serviços públicos considerados idóneos pela Ordem dos Médicos, sendo que um dos membros do júri seria o "representante" da Ordem, oficializando assim a titulação.

Julgo que ainda é assim, e é por isso que ter o Estado como empregador é uma inevitabilidade.
Mas, como é sabido, o Estado paga pouco e exige muito, e é por isso compreensível que, quando os jovens médicos terminam a sua formação como especialistas, procurem outras paragens mais atractivas em termos remuneratórios, muitas vezes abdicando de carreiras, quiçá mais atractivas em termos de realização pessoal como médicos, como as que podem ter em serviços de grande rotação de doentes como acontece na maioria dos hospitais e centros de saúde do SNS.

Tenho para mim que se foi deixando que o SNS se fosse enviesando, com o olhar para o lado a ser a regra regente para enfrentar os mais que previsíveis problemas que foram surgindo, com os jovens médicos que, à falta de atractivos em termos de carreira no Sistema Público, procuraram outros atractivos em termos remuneratórios que os ditos privados podem oferecer.

A diferença fundamental entre ter o Estado ou uma entidade privada como empregador está na forma como se encaram os procedimentos para que os médicos se sintam realizados nas suas opções de vida.
Um outro problema está na hospitalocracia vigente: os hospitais, por estarem na génese do SNS, ficaram com a fatia de leão de todo o processo, relegando a Medicina Geral e Familiar, especialidade entretanto criada e desenvolvida a partir dos Centros de Saúde, para um plano secundário, quase uma "segunda escolha", mas ainda com o Estado como empregador - e a primeira grande mudança de paradigma tem de começar por aqui.

Mas já lá vamos.

No entanto, o Estado empregador não cuida bem de quem cuidou dele pelo menos durante cinco anos - o tempo que leva a formar um Especialista!

Durante os cinco anos, o dito empregador usa e abusa da necessidade por si imposta: é necessário estar num serviço do SNS, hospital ou centro de saúde, para se poder especializar, mesmo que os jovens médicos não tenham grande gosto em ter como patrão o Estado.

Esta é mais uma mudança indispensável de paradigma para se poder repensar o SNS.

O Estado investe em cinco anos da vida de um jovem médico, forma-o e depois deixa-o ao Deus dará? É óbvio que se aparecer uma oportunidade mais atractiva no sector privado da saúde, o jovem opte por ela em detrimento de uma menos atractiva (em termos remunatórios) no sector público. Diz ainda no seu artigo a Directora da "Visão", pondo o dedo em cheio na ferida, que "Problemas idênticos, em que o dinheiro é uma questão mas não é o seu cerne principal, tem também a Saúde". Concordo. O dinheiro é uma questão, mas não é o cerne principal.

A carreira de um médico, a atracção que a Medicina exerce, tem mais a ver com o conseguirmos dar aos nossos doentes o melhor tratamento possível, sendo para isso indispensável uma formação contínua, muito para além do internato da especialidade, e uma ajuda e relacionamento interpares eficaz, factores que vão muito além das atractividades financeiras - com isto não quero dizer que o aspecto financeiro não conta; conta e muito, mas havendo outras formas de tornar melhor a vida de quem a dá pelos outros, essas serão tidas em linha de conta, primordiais talvez, quando se depararem as opções de vida futura: carreira, família, bem-estar.

As mudanças das equipas ministeriais não resolveram os problemas - são quase diárias as notícias sobre novos focos de desagrado e inacção - porque se mantiveram agarrados a paradigmas usados e a precisar de recauchutagem urgente.

Há que alterar a hospitalocracia instalada, há que alterar a forma como os doentes são encaminhados dos Centros de Saúde, onde os médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar "perdem" muitos dos seus pacientes numa voragem de burocracia administrativa (um exemplo: um médico de um centro de saúde precisa de uma opinião de uma especialidade hospitalar e encaminha o seu doente para a consulta de ... no hospital da sua área. Entra a burocracia e o médico de MGF fica, na maioria das vezes sem saber a que colega ficou "entregue" o seu doente. O médico da consulta de ..., vê o doente e faz um relatório para o paciente entregar ao seu médico do Centro de Saúde mas, pelo sim pelo não, marca uma consulta para reavaliação e seguimento na sua consulta hospitalar, com o doente a ser seguido por dois médicos, um no hospital e outro no centro de saúde, com a consequente sobrecarga de consultas em ambos os serviços. O que deveria ser feito, e é feito em alguns países com Sistemas de Saúde semelhantes ao nosso, era o médico de Centro de Saúde enviar o seu paciente para o médico hospitalar da consulta de ..., Dr, Fulano, com quem trocaria impressões e opiniões sobre qual o melhor caminho a seguir para que aquele doente tivesse o melhor tratamento possível, e preferencialmente seguido somente pelo seu Médico de Família, voltando à consulta de ... somente em caso de força maior e por indicação do seu Médico de Família.), fazendo com que a relação directa interpares seja quase inexistente.
Uma mudança no paradigma hospitalocêntrico para uma valorização do papel central e fundamental dos Centros de Saúde, faria com que houvesse uma diminuição da pressão sobre os serviços hospitalares que ficariam mais disponíveis para outros trabalhos também fundamentais na carreira dos médicos, como formação e investigação.

O olhar sobre a Saúde em Portugal tem de ser muito mais abrangente e não focado principalmente nos vencimentos e nas contratações que têm de ser feitas para evitar roturas nos serviços ditos indispensáveis.
É indispensável, sim, começar a pensar que todos são insdispensáveis, e não só aqueles que são mais evidentes e atractivos para a opinião pública e publicada, para que hajam médicos a considerar que o Estado pode ser um bom empregador, mesmo depois do período em que obrigatoriamente, por imposição sua, tem de o ser!

Médico

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