Sistemas e tecnologias de informação – seu papel na mudança
A saúde, talvez a área mais complexa no domínio social, exige um sistema de informação que sustente e potencie a resposta ao seu maior desafio atual e futuro: como acompanhar o percurso de vida das pessoas, na saúde e na doença, capacitando-as na sua gestão, num contexto de morbilidade múltipla, garantindo a integração e a continuidade de cuidados.
Na saúde, como na sociedade em geral, o impacto causado pela acelerada transição digital em curso, tem desencadeado dois grandes tipos de preocupações:
- Os que assumem a tecnologia e o digital como a solução de todos os problemas e disfunções do sistema de saúde;
- Os que consideram que esta degrada a relação profissional de saúde-doente, desumanizando-a, e tornando-os reféns da tecnologia.
Ambos decorrem das experiências pessoais de cada um, sem suporte numa análise e leitura clara do que está em causa, na realidade.
Para ultrapassar esta dicotomia, assumimos como pressupostos:
Afirmar: queremos uma "internet das coisas" para ter tempo e espaço para as pessoas;
Perguntar: "o que deve a tecnologia fazer?" em vez de "o que pode fazer?";
Assumir: a transição digital é um meio e não um fim si mesmo,
Neste enquadramento, a visão de um sistema de informação na saúde como suporte e fator de mudança tem, como foco essencial e estruturante, um registo de saúde eletrónico (RSE), que tenha como definição funcional:
Eu, cidadão, tenho acesso à minha informação de saúde e interajo com ela, ao longo de todo o meu percurso de vida e em qualquer ponto do sistema de saúde, seja nos seus diferentes serviços de saúde, seja com os vários atores, leia-se os diferentes profissionais de saúde, cuidadores, entre outros que interagem comigo.
Como representar este RSE?
Poderá ser representado de forma gráfica simples como uma linha de vida, com os vários acontecimentos/episódios que vão tendo lugar, incorporados em diferentes formatos, sejam eles texto, imagens, voz.
Para além desta representação gráfica, naturalmente interativa, toda a informação estará sistematizada em agrupadores, de dois grandes tipos:
I - Os funcionais, como os das alergias, doenças e problemas ativos (resolvidos e de evolução prolongada), da gestão da medicação crónica, dos internamentos, dos parâmetros biométricos, dos resultados analíticos, entre outros, com destaque para:
Plano Individual de Cuidados - representação do percurso da pessoa, o seu plano, onde está e para onde vai, quais os seus objetivos e como acompanha a sua jornada;
Gestão Integrada dos Percursos - a qualificação do acesso, qual a forma como se define e garante o que deve acontecer (gestão das expectativas).
II - Os perfis de utilizador, ou se quisermos, os diferentes olhares, sistematizando e qualificando a informação, seja para a pessoa e/ou o seu cuidador, o médico de família, o enfermeiro de família, o farmacêutico, o cirurgião, o nutricionista, entre outros.
Esta sistematização da informação é uma exigência funcional que permite qualificar a experiência de utilização dos diferentes perfis de acesso, sejam eles o cidadão ou o profissional.
Como construir este RSE?
O RSE, é uma plataforma integradora de dados e informação das diversas origens e fontes, de que são exemplo os diversos processos clínicos eletrónicos em uso nas instituições prestadoras de cuidados, os resultados dos exames laboratoriais e imagiológicos, os registos dos cuidadores no acompanhamento de doentes dependentes, os dados de dispositivos de leitura de atividade e monitorização de parâmetros biométricos, hoje cada vez mais disseminados. Todas estas são plataformas transacionais, aplicações que "alimentam" o RSE.
Esta visão exige a definição de um modelo de governação, que dê resposta a um conjunto de requisitos, dos quais realçamos:
Governação e gestão de dados - o maior ativo do sistema de informação, obriga a definir a sua qualidade, disponibilidade funcional e temporal, os perfis e níveis de acesso, a sua segurança, o seu armazenamento entre outras;
Interoperabilidade e integração - três dimensões essenciais:
a) Semântica, que garante que diferentes nomenclaturas, escalas e ou linguagens traduzem o mesmo conceito;
b) Tecnológica, que, através da definição de requisitos e normas, garante a interoperabilidade dos dados das diferentes aplicações e dispositivos;
c) Funcional, que garante a disponibilidade, acesso e utilização nos diferentes pontos de contacto do percurso de cuidados, resolvendo aspetos de portabilidade e mobilidade.
Cibersegurança - a proteção dos dados, a sua integridade e inviolabilidade, a gestão do acesso seja por diferentes perfis, contextos e finalidades, entre outros.
Arquitetura do sistema - uma visão global e funcional de futuro, alicerçada em aspetos essenciais, tais como: modularidade - o caminho não está todo definido, sendo esta mudança um exemplo de políticas adaptativas de descoberta e criação do caminho; redesenho dos processos - não basta informatizar, temos que simplificar, redefinir o que deve acontecer; conseguir o difícil equilíbrio entre parametrização e personalização.
Literacia/capacitação
Esta é uma componente funcional essencial. Configura o dispositivo de gestão do conhecimento, imprescindível, para responder à exigência da construção continuada de uma rede de inteligência colaborativa que suporte este processo de mudança.
Tem como dimensões essenciais: instrumentos para as pessoas - capacitando-as na tomada de decisões informadas, na construção e acompanhamento dos seus planos individuais de cuidados; apoio aos profissionais - à decisão clínica e aos processos de melhoria contínua; prestação de contas e transparência.
Naturalmente que esta visão deve responder aos requisitos do International Patient Summary, projeto europeu, liderado pela eHealth Network, organização europeia que definiu a visão estratégica integrada da digitalização da saúde na Europa.
O PRR contempla 300 milhões euros para a transição digital na Saúde, e identifica os seus principais desafios e bloqueios, agrupando as suas medidas em 4 pilares - cidadão, profissionais, registos nacionais e rede.
Temos uma oportunidade histórica de concretizar esta visão. Saibamos aproveitá-la.
Diretor Executivo do ACeS do Baixo Mondego