Começo por recordar um telefonema recebido na varanda do Argana, em Marraquexe, no dia 20 de abril de 2011. Era a TSF a pedir um comentário sobre o evoluir da situação na Síria, quando na Tunísia e no Egito por exemplo, os líderes já tinham sido destituídos e estes países já se preparavam para a fase seguinte, do regresso à normalidade constitucional possível, mas que demonstrava uma evolução fora da caixa da continuidade. Lembro-me de ter dito, "olhe daqui a 10 anos ainda estaremos a falar disto e as mudanças estruturais não serão muitas!" Porquê? Perguntou a jornalista. "Porque o regime sírio tem o Irão como pilar central e o Irão é outro nível!"..E cá estamos, a confirmar a "profecia" dada ao único regime do Médio Oriente que conseguiu assegurar a continuidade dinástica pretendida por Saddam Hussein no Iraque, por Ali Abdullah Saleh no Iémen e, no norte de África, por Hosni Moubarak no Egipto, Ben Ali na Tunísia e Muammar Kadhafi na Líbia, que não conseguiram assegurar a transição de pai para filho, confirmando o negócio de família em que transformaram os negócios de Estado..No caso sírio, o clã Assad, alauita - uma nuance xiita considerada até por muitos "xiitas do centro" como uma seita herética e menor dentro da mancha, muitas vezes intermitente, do xiismo que vai do Mediterrâneo até ao Afeganistão -, conseguiu tornar-se numa âncora periférica da Revolução iraniana de 1979..O Mediterrâneo tem aliás um papel estratégico no desenrolar e evoluir dos acontecimentos desde a origem até hoje, dia consensual para o assinalar do início da guerra neste "satélite" de Teerão e de Moscovo. Desde logo, a revolução islâmica conseguida em 1979 pelo Aiatola Khomeini, para se legitimar necessitava de ganhar dimensão internacional e o primeiro passo seria, como foi, o de engajar todas as comunidades xiitas da região na mesma. Ao expandir-se para oeste, não estava apenas a prosseguir este propósito como também a ter acesso ao mar pelo Líbano e pelas montanhas alauitas na Síria, província ribeirinha em total sintonia com Damasco, como o nome aliás indica. Este avanço, também permite a Teerão o início de um cerco a Israel a partir do norte, o que mais tarde ficaria completo, quando começassem a converter sunitas que não resistiriam ao imparável movimento pan-islamista cujo folego e lealdade a Deus, em muito começava a anular um pan-arabismo sustentado em egos, cujo novo-riquismo os tornava permeáveis e sem estratégia. Este novo Irão apresentava Deus em toda a sua dimensão e até o Hezbollah é, na verdade o Hezbollah, o Partido de Alá, o Partido de Deus. Imbatível do ponto de vista retórico, sendo a Síria de Hafez al-Hassad, o pai de Bashar, uma das peças chave para este reviralho de paradigma regional..Por outro lado, dentro do outro paradigma mundial, o da guerra fria, a porta de entrada de Moscovo no Médio Oriente sempre foi Teerão, que tinha expulso os americanos da forma mais humilhante possível e nacionalizado os grandes investimentos destes na extração de petróleo. Este aliado, o Irão, também tem fronteira com o Afeganistão que a partir de 1979 foi palco do maior, por ser o mais visível, investimento bélico soviético durante a década de 80. Moscovo também tentou o pleno desde o mediterrâneo até ao Afeganistão, tendo ainda hoje nestas "águas quentes" a base naval de Tartus e o seu Echelon de espionagem sintonizado para a Turquia/NATO em Latakia, juntamente com uma base aérea. É a partir daqui que a Rússia projecta força para a Crimeia, para o Cáucaso e para a Líbia também, pelo que é vital para Moscovo a manutenção da família Assad em Damasco..Irão e Rússia são os pilares deste regime, que 10 anos após o início da primavera árabe ainda se mantém, quando todos os outros já mudaram de líderes, embora muitos ainda não tenham mudado de página!.Há também e, desde sempre, um problema de liderança no mundo islâmico e até hoje ainda não se sabe qual o "telefone vermelho" a ligar, em caso(s) extremo(s). Há 10 anos, um desses telefones sunitas ainda se encontrava numa gruta qualquer em Tora Bora, personificada pela Al-Qaeda de Ossama Bin Laden. Nesse sentido, o Ocidente deu liberdade de ação ao aliado NATO Turquia, sem nunca se comprometer, visto nunca ter acionado o artigo 5.º da Aliança, apesar dos caças turcos abatidos pelos sírios. O mal menor para Paris, Londres e Washington seria fazer de Ancara o "Vaticano sunita", em vez de uma gruta sem código postal ou ainda de Teerão, uma Teocracia que não poderia nunca ser o centro do Islão aos olhos das democracias e da maioria sunita também. O Irão aliás, sempre jogou a perenidade do seu regime sustentando a perenidade do clã Assad. Perder Assad é perder a guerra e perder a guerra é perder a revolução de 1979 e assumir que o xiismo, apesar de ter iniciado a transição do pan-arabismo para o pan-islamismo, também a perdeu para o sunismo..Erdogan aproveita a primavera árabe e a oportunidade Síria para se consolidar no poder internamente, via combate aos curdos transfronteiriços, já num upgrade da batalha que passou a incluir o "estado islâmico" ("ei") e "à la international", exportando o seu modelo de Califado Otomano ancorado no ideário da Irmandade Muçulmana nas eleições da Tunísia, do Egipto e da Líbia, tendo avançado neste último para a guerra, com turcos e russos a transferirem mercenários precisamente da Síria para o norte de África, catapultando o Mediterrâneo para uma guerra proxy entre Turquia e Rússia, em dois países distintos e partes integrantes do extinto Império Otomano..Voltando aos curdos, no sentido de concretizar que a Síria tem sido na última década um interesse menor para as grandes potências envolvidas no conflito, recordo um episódio chamado Kobane, em 2014, na fronteira sudoeste da Turquia com o norte da Síria, último reduto dos curdos sírios. O objetivo principal de Erdogan continuava a ser o derrube do regime de Bashar al-Assad, enquanto os americanos tinham como prioridade a capitulação total e absoluta do "ei", o que, segundo diziam na altura, abriria caminho para a queda de Assad. Caso o "ei" conquistasse Kobane, a terceira cidade curda síria, deixaria de ser um problema para Ancara, na perspetiva em que o "ei" cortaria em dois o eixo Afrin/Kobane/Kameshli, cerca de 900 km, impedindo assim a criação da Rojava, o Curdistão sírio, que pretendia seguir os passos do Curdistão iraquiano, autónomo face a Bagdad desde 1991. Tanto assim foi que o Parlamento turco aprovou nesse outubro de 2014 a intervenção militar das suas tropas na Síria e no Iraque, bem como a utilização das suas bases militares pelos aliados anti "ei", sob o pretexto da luta contra todos os terrorismos, interessante eufemismo para incluir os curdos do Partido dos Trabalhadores Curdos, o PKK na Turquia e o Partido da União Democrática, o PYD dos curdos sírios, no mesmo saco que o "ei". O ardil de Erdogan foi ainda mais longe, já que usou a boa relação que mantinha com Massoud Barzani, o líder dos curdos iraquianos, que acedeu a transferir militares seus para irem em socorro dos seus pares em Kobane, eliminando o "ei" e também qualquer ambição de criação de uma Rojava inspiradora para o PKK na Turquia. Barzani acedeu a jogar a carta da divisão, porque também não quer competição à volta, nem colocar em causa as boas relações na vizinhança que lhe asseguram uma autonomia no norte do Iraque, que mantém aspirações à independência..Em resumo deste cenário de intersecção dos mais variados interesses extra-sírios que confluíram para este território, o regime Assad foi garantindo o essencial, a não criação das chamadas zonas libertadas, que permitiriam bolsas de projeção de força que num efeito dominó, permitiriam a criação de outras, expulsando, em teoria, os alauitas para as suas montanhas no mediterrâneo, onde beneficiariam da proteção russa e a Síria seria hoje uma "federação religiosa", decretando-se assim a morte definitiva dos Acordos Sykes-Picot de 1916, as fronteiras europeias definidas por franceses e britânicos, para muitos a causa de todos os males deste Oriente mais próximo a partir de Lisboa..O caos que a intervenção da NATO criou na Líbia levou toda a comunidade internacional a prospetivar o pior para a região com uma potencial capitulação do regime sírio. Havia e há potencias nucleares em confronto direto e indireto nesta grande proxy e, a bem de todos, menos dos sírios, o impasse mantém-se. É preciso recordar que há nove anos, quando a primeira missão de observadores internacionais é autorizada a entrar, organizada pela Liga Árabe, tiravam fotografias com telemóveis e pediam às populações papel e caneta para tomarem apontamentos, entre a saída dos carros e a visita aos locais. Tanto foram ameaçados pelas polícias e militares locais, como pelos manifestantes. O próprio líder dessa missão foi o general sudanês al-Dabi, muito próximo do presidente Omar al-Bashir, indiciado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra no Darfur..As Nações Unidas, enquanto conservarem a ordem saída da II Guerra Mundial, encontrarão os muros habituais no Conselho de Segurança, sendo que neste particular sírio viram a China a alinhar o veto com a Rússia. Um ano após o conflito, os famosos "Seis Pontos de Kofi Annan", já não incluíam a saída de Bashar al-Assad da presidência síria!.Politólogo/Arabista.www.maghreb-machrek.pt