"Sinto-me furiosa quando vejo os políticos a mentir na TV"

Entrevista à atriz Vanessa Redgrave a propósito da estreia de "Sea Sorrow", o primeiro filme que realizou.
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A atriz Vanessa Redgrave resiste a falar dos anos 1960, mesmo reconhecendo que foi nesse período - em que fez filmes como Morgan - Um Caso para Tratamento, de Karel Reisz, Blow-up, de Michelangelo Antonioni, ou Um Homem para a Eternidade, de Fred Zinnemann - que conheceu um requinte de produção que hoje considera perdido. Ao realizar Sea Sorrow (em exibição), assume um claro e veemente programa político: chamar a atenção para a dramática crise dos refugiados. Contou com a colaboração do seu filho Carlo Nero, produtor e realizador, e também de Alf Dubs, membro da Câmara dos Lordes que tem lutado pela criação de um novo enquadramento legal que favoreça a recepção de mais refugiados no Reino Unido. É um filme que se demarca do vazio informativo que, segundo Vanessa Redgrave, prevalece no espaço televisivo.

O filme Sea Sorrow apresenta-se como um testemunho pessoal, muito forte, sobre a atual situação dos refugiados. Porque decidiu assumir também a realização?

Precisamente por isso, por ser tão pessoal.

Era importante escolher as imagens, os textos, controlar a montagem?

Absolutamente. Na verdade, é-me muito difícil falar do filme. Prefiro falar da situação que envolve refugiados e governos, daquilo que devia ser feito, do que tem sido feito, do que não se está a fazer. O filme é algo que criei com a assistência constante do Carlo [Nero] que, além do mais, possui a experiência decorrente dos muitos filmes que fez. Eu própria produzi muitos filmes, mas produzir é bem diferente. Em qualquer caso, creio que posso dizer que não segui uma receita.

Porquê o paralelo com as suas próprias memórias da Segunda Guerra Mundial?

No princípio, o projeto não envolvia as minhas memórias pessoais - esse aspeto surgiu mais tarde. Tratava-se de recordar que o governo britânico foi responsável pela recusa de vistos a dezenas de milhares de judeus, o que significou entregá-los a Hitler. A opinião pública queria que essa ajuda fosse consumada, foram os políticos que o impediram. No filme, há uma carta de Sylvia Pankhurst que, evocando os massacres de judeus na Noite de Cristal, em 1938, reflete a agonia de muitos cidadãos perante o facto de os Negócios Estrangeiros terem recusado tantos vistos - no caso dela, o apelo envolvia duas raparigas que ela conhecia. Passei a minha vida a estudar tudo isso. Porquê? Porque, desde muito criança, sempre temi que se possa repetir. Agora, temos uma situação em parte semelhante: há também uma quantidade imensa de pessoas a tentar ajudar os refugiados, venham eles da Síria, Afeganistão ou Iraque... E o Iémen? O Iémen é um país destruído, fomos nós que ajudámos a destruí-lo.

Quando diz "nós", refere-se a quem?

Os britânicos. E a Europa, por certo. Mas estou a falar especificamente dos britânicos que venderam armas à Arábia Saudita, permitindo que a Arábia Saudita destruísse o Iémen. Leio informações sobre isso quase todos os dias. Vejo pouca televisão, porque a televisão são coisas de uns breves segundos, não trata de notícias importantes. Leio muito online: o Financial Times, que é o nosso jornal de folhas "cor-de-rosa", o Haaretz, um jornal progressista de Israel que tem uma edição diária em inglês, e as newsletters dos Médicos sem Fronteiras e de uma ONG italiana de nome Emergency.

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Acredita que o cinema, e o seu filme em particular, pode desempenhar um papel importante nessa divulgação de informação?

Sim, mas os filmes dependem muito da distribuição. Digamos que é a segunda parte da vida de um filme: será que conseguirá ser distribuído? Depois, esperamos que as pessoas que vão ver esse filme poderão, por algum tempo, repousar a mente e ponderar aquilo que viram - acho que é uma boa palavra, ponderar, tal como ponderação. Isto tendo em conta que os nossos políticos não prestam, são inúteis, com algumas honrosas exceções - sendo Alf Dubs, e o seu notável trabalho, uma dessas exceções.

É muito cética face ao exercício da política?

Não, não sou - sou realista. Não temos um único partido político que, na sua plataforma, tenha assumido a defesa dos direitos humanos como coisa vital e essencial que deve ser implementada em todas as circunstâncias, para questões domésticas ou internacionais. Mesmo não esquecendo que temos pessoas decentes nos principais partidos. Ora, do meu ponto de vista, isto é uma situação perigosa.

Na década de 60, quando surgiu em filmes tão importantes como Morgan - Um Caso para Tratamento, de Karel Reisz, ou Blow-up, de Michelangelo Antonioni, será que a vida política no seu país era diferente?

Na sua origem, os problemas seriam distintos. Em qualquer caso, eu fui das primeiras pessoas a protestar contra a guerra do Vietname.

Era mais otimista?

Na verdade, quando nos envolvemos numa ação desse género, não creio que pensemos em termos de otimismo. O importante é saber o que fazer para ajudar e talvez provocar uma pequena mudança - ou uma grande mudança.

Guarda boas memórias desse tempo?

Creio que a minha memória está a desaparecer... [riso] Nessa altura nem sequer ia muito ao cinema. Nos anos 1960, quando fui para Hollywood senti-me muito impressionada com a qualidade do trabalho. Participei em Camelot, de Joshua Logan, um dos derradeiros filmes dos grandes estúdios. O trabalho dos vários departamentos de produção era absolutamente incrível e isso desapareceu, para sempre.

Lamenta o fim desse cinema?

Era um cinema com características muito próprias, sem dúvida. Mas o que eu lamento é o desperdício. Mais do que lamentar, odeio o desperdício. Não quer dizer que hoje em dia eu não trabalhe com pessoas de que gosto sempre imenso: são inteligentes e promissoras, mas já não têm o mesmo conhecimento. Por exemplo, há certa coisas que os cenógrafos ou criadores de guarda-roupa já não sabem fazer... O conhecimento desapareceu, e importa dizer que também não têm o dinheiro nem tempo para o fazer - o problema está instalado e envolve tudo isso.

Esse saber está mesmo perdido?

Sei que se perdeu. E os dois ou três profissionais que ainda poderiam retomar essas tarefas não são contratados pelas principais produções. Porquê? Porque ia demorar muito tempo... Do meu ponto de vista, não seria tempo a mais.

É, portanto, uma questão de trabalho.

E, acima de tudo, de competências. Uma questão de conhecimento. É um desperdício que se observa, não apenas no cinema, mas por todo este planeta - a vida tem sido desperdiçada por todo o planeta. Precisamos todos de despertar. Continuamos como se o dia de amanhã fosse necessariamente igual... Mas não é. Digo isto com ternura, não com fúria. Claro que me sinto furiosa quando vejo os políticos a mentir na televisão. Tenho a sensação de que a maioria das pessoas já não acredita nos políticos - mas quem quer tomar o seu lugar?

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???????Parece-lhe que o trabalho de informação desenvolvido em Sea Sorrow existe noutros filmes atuais?

Acontece que as notícias deviam dar... as notícias. Não é essa a responsabilidade do cinema, a não ser que se mostrasse um filme novo todos os dias. A televisão quase não dá notícias - e se alguém achar que estou errada, tenho todo o gosto em ouvi-lo.

A televisão não mostra o mundo tal como ele existe?

Por vezes, num relance, isso acontece, mas não há uma explicação. As pessoas não estão a ser educadas, os pais dos jovens de hoje não foram educados.

Nessa perspetiva, podemos dizer que o modo como Sea Sorrow lida com a atualidade não é muito frequente no cinema contemporâneo.

Talvez porque eu tenho 80 anos. Tive um ataque cardíaco há dois anos e um brilhante cirurgião grego, num hospital público inglês, salvou-me a vida. Viajo de país em país para mostrar o meu filme. Neste momento, é esta a minha prioridade. Quero fazer o que está certo e tentar ajudar. E se conseguir ajudar, sinto que a minha vida valeu a pena - é tão simples quanto isso.

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