A vida de Sílvia Machado é uma espécie de ensaio sobre a cegueira, sem o romantismo de um livro de Saramago. Porque a dela é real e irreversível. Aos 43 anos, desenvolveu uma aplicação que permitirá, através do telemóvel, identificar alimentos, roupas, medicamentos ou detergentes, facilitando a vida a milhares de pessoas em Portugal - e a milhões no mundo inteiro. Mas depois de ver aprovado o seu projeto pelo programa Portugal Inovação Social, esbarrou na falta de um investidor que sustente os 30% que lhe faltam para tornar real esta ferramenta..Sílvia tem 43 anos, mora em Aveiro e vive com os dois filhos pequenos (uma menina de 4 e um menino de 10 anos). A cegueira aconteceu já na idade adulta, quando o diagnóstico de um médico especialista lhe ditou o destino: Stargardt, uma doença degenerativa da mácula. Foi antes dos 30, antes de tudo mudar. "Eu já conduzi. Gostava muito de conduzir. Talvez seja das coisas de que sinto mais falta", conta ao DN, numa manhã chuvosa que transformou Aveiro numa cidade-estaleiro difícil de percorrer para um deficiente visual. À hora marcada, Sílvia engana-se na morada da (nova) biblioteca municipal e só lá chega com a ajuda de um estranho. Já sentada, desfia as contas desse rosário que é a vida dela, desde que foi perdendo a visão. Antes licenciou-se em Artes Plásticas na Escola Superior de Arte e Design das Caldas da Rainha. Nasceu numa aldeia dessa região oeste..Depois do curso de pintura trabalhou na Dinamarca, em Inglaterra e Moçambique, neste último através de um programa de voluntariado - People to People. Já levava o diagnóstico, mas ainda tinha a secreta esperança de que tivesse sido um engano. "Mas comecei a ter problemas de visão, e lá [em Moçambique] comecei a andar de bengala, porque tropeçava constantemente.".Regressou a Portugal, a uma realidade nova: os pais não aceitavam essa espécie de fatalidade. "Passaram por uma fase de muita revolta, de tristeza. De alguma maneira penso que se culpavam. No fundo acho que foi mais difícil para eles até do que para mim", considera Sílvia, quando faz a retrospetiva do caminho que a levou à criação da aplicação Avatag, anos mais tarde. Recuando ainda a esse tempo, percebeu que começava a ter "muita dificuldade para encontrar emprego". Nesse exercício de aceitação, Sílvia frequentou um programa de reabilitação no Lar Nossa Senhora dos Anjos (para deficientes visuais), na Parede. E foi lá que fez o curso de massagista e que aprendeu a teclar sem ver. "Andava perdida, sem saber o que havia de fazer. Foi importante esse tempo, porque estávamos todos em pé de igualdade, porque ríamos uns dos outros, das nossas "cegadas"", recorda. Foi depois disso que conheceu o pai dos filhos, natural de Aveiro. E foi assim que se mudou para a cidade..Quando conheceu o agora ex-companheiro, tinham passado dez anos desde a consulta em Coimbra e da sentença do médico especialista. Nessa fase ainda ia ao supermercado e conseguia escolher os produtos, ver a data de validade. Quando o filho nasceu, deixou de conseguir. A falta de visão agravou-se progressivamente. Mais tarde, Sílvia acabou por se separar do companheiro..E foi já nessa nova fase da vida, sozinha, com os filhos, que lhe nasceu a necessidade de estabelecer uma ponte com um mundo que não está, de todo, preparado para a deficiência visual..Foi a escola e uma sistemática falha na comunicação que acabou por desencadear a necessidade "de alguma coisa, uma ponte que a melhorasse". "Quando os miúdos são mais pequenos (paradoxalmente) é mais fácil. Como sou muito criativa (vim das artes plásticas e isso ajuda) tenho o que fazer com eles. Mas quando o meu filho chegou ao primeiro ciclo, tudo mudou." Basta saber que "neste ano [letivo] ainda estou à espera dos livros traduzidos para formato digital", conta ao DN..Nesse compasso de espera, vai ajudando o filho da maneira que consegue, "muito intuitiva". "Hoje já consigo fazer muita coisa porque é tudo muito digital, e isso foi importante." De tal maneira que Sílvia costuma dizer que a pandemia lhe trouxe quase só coisas boas, pois o mundo digital avançou em todos os campos, permitindo-lhe, pela primeira vez, um maior acompanhamento da escola dos filhos. Por exemplo, desde que a caderneta foi substituída pelo e-mail. E foi afinal a célebre caderneta o que desencadeou a criação do seu projeto.."Sempre me senti muito perdida no que havia de fazer profissionalmente", admite Sílvia, que há três anos decidiu frequentar um curso de empreendedorismo, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). "Mudou a minha vida. E isso posicionou-me as ideias", sustenta. Foi o curso que lhe deu, afinal, a luz que faltava. Imaginou os cadernos com umas etiquetas, que pudessem ser lidas através de um telemóvel, e assim ser possível os pais comunicarem com os professores - e também ser muito fácil de usar para crianças..O projeto consiste em cinco etiquetas, de diferentes formas: um coração, uma estrela, um quadrado, um círculo e um triângulo. "As formas mais simples de identificar, para fazer conjuntos. E que vão permitir, através de braille, uma leitura. Cozê-las na roupa das crianças, por exemplo. Cada uma dessas etiquetas tem um chip, que comunica com o telemóvel." O NFC (chip), o mesmo que se usa para leitura de cartões para pagamento, tão em voga atualmente..Depois, é a simplificação de toda a vida: "Quando estou a cozinhar, precisava de uma coisa dessas. Por exemplo, para distinguir o óleo do azeite." Foi por isso que inicialmente Sílvia pensou apenas na aplicação para uso doméstico, mas logo percebeu que a mesma poderia massificar-se, colocar nas aplicações para leitores de código de barras ou código QR. E assim permitir distinguir as embalagens de champô, os alimentos no congelador, "para saber se é carne de porco, de vaca, frango. Ou os detergentes. Além disso, a aplicação permite ver o que temos na despensa, no congelador. E pode ser em braille e digital, permitindo gerir as compras"..Depois de idealizado o projeto, Sílvia percebeu que precisava de alguém que a ajudasse a materializá-lo. Foi batendo a várias portas, até que um dia teve a sorte de encontrar do lado de lá da linha o proprietário da empresa Present - Techologies, no Instituto Pedro Nunes, em Coimbra. Vítor Batista estava sozinho na empresa (era véspera de feriado) e atendeu o telefone. Achou a ideia excelente. A partir daí trabalharam toda a parte tecnológica, apresentou o projeto a Pedro Mendes, da incubadora I9 Social Skillant, e mais tarde ao programa Portugal Inovação Social.."Eles ajudaram-me a fazer o trabalho todo, sem eu pagar nada. E isso foi fundamental." O projeto (avatag.pt) foi aprovado, com um financiamento de 70%, dos 140 mil euros em que está avaliado. Mas faltam-lhe agora os restantes 30%, fundamentais para o implementar. O equivalente a 40 mil euros. A parceria para a execução do projeto divide-se entre entidades públicas, privadas (através da responsabilidade social das empresas) ou entidades da economia social. O investimento que falta, diz, pode vir também através de parcerias, de uma fundação ou de um município, por exemplo, ou apenas de um único investidor privado, desde que entre com os tais 30%..Alexandra Neves, responsável pela gestão do programa na região centro, acredita que "este é um projeto para chegar ao fim do mundo, permitindo a todas as pessoas invisuais que não errem na identificação de produtos. Falta apenas esse bocadinho para que isto possa chegar a imensas pessoas. Por isso é que o queremos testar, experimentar, desenvolver, para que se possa tornar um negócio social. Depois de patenteado, pode ser comprado como um negócio ou um produto"..Além disso pode tornar-se no emprego de Sílvia, na sua fonte de rendimento. A autora do projeto quer "sobretudo que seja útil, sirva de partilha, de ponte entre os cegos e o resto da sociedade"..Se for implementado, pode mudar a vida de cerca de 30 mil deficientes visuais, em todo o país..Até lá, Sílvia continuará este ensaio sobre a cegueira, em casa e na rua. Quando vai ao supermercado sozinha, muitas vezes pede ajuda. Em casa, vai-se orientando como pode. Há dificuldades todos os dias, com os detergentes, por exemplo, ou com os medicamentos. "Atualmente consigo identificá-los pelo cheiro, até os genéricos, ou então provo, quando tenho dúvidas. O telemóvel também já tem muitos recursos para reconhecer texto. Mas com a roupa das crianças é muito complicado. E o congelador também."."É possível. Eu sei que é possível tornar a vida das pessoas mais fácil", sublinha Sílvia Machado, olhos azuis, pele clara e uma grande força de vontade. Deixar de conduzir foi, afinal, o que mais lhe custou desde que perdeu a visão. "Tinha muito automatismo de acordar ao fim de semana e programar tudo para fazer de carro. Depois foi a adaptação para depender das outras pessoas.".Sílvia diz que deixar de ver tornou-a diferente, interiormente. "Dantes eu era muito mais superficial. Agora, para ter mundo, preciso de ouvir. Toda a construção que faço das outras pessoas e das coisas é por aquilo que elas me dizem. A deficiência visual trouxe-me essa paisagem interna", conclui. Já o afastamento social que a pandemia imprimiu na sociedade não foi novo. "Muitos deficientes já o sentiam. Já vivemos nisto há muito tempo. Por isso, quando em março ficámos todos em casa, o mais difícil foi gerir as crianças e a escola. Porque confinada...já eu vivia."