Depois do rato falante (que fundou o Império), depois dos patos falantes e dos dálmatas falantes, depois do veado falante, do leão falante, e do peixinho falante, a Disney acrescentou finalmente ao seu património intelectual o pénis falante. O momento histórico acontece no segundo episódio de Pam & Tommy (uma mini-série de 8 episódios sobre óculos escuros, carpintaria, sexo!, e as memórias culturais de pessoas com mais de 30 anos), que embora tecnicamente não seja um produto Disney, se encontra orgulhosamente disponível na plataforma Disney+, ao lado de todas as outras fábulas..O pénis em questão - um dispositivo animatrónico da cor de um sabonete Dove, e com a forma de um instrumento utilizado para lavar elefantes no circo - começa a falar ao minuto 21, e usa o registo, timbre e retórica de alguém cínico e (salvo seja) calejado, que já viu e ouviu tudo muitas vezes. O seu interlocutor Tommy Lee (ou melhor, "Tommy Lee", interpretado por Sebastian Stan) é quem adopta a postura idealista durante todo o colóquio; o pénis é quem tem os, portanto, pés bem assentes no chão..A cena dura minuto e meio, e será o momento mais superficialmente memorável nos três primeiros episódios, podendo por isso concluir-se que o pénis falante merece amplamente estes dois parágrafos no Diário de Notícias, jornal fundado em 1864 para praticar um jornalismo moderno, informativo e independente, apesar de o conceito de um pénis falante não ser nem original (o Tommy Lee "real" usou-o como dispositivo retórico para narrar algumas secções da sua autobiografia), nem sequer "original" (já existiam alguns pénis falantes na história audiovisual, o melhor dos quais em Marquis, um elegantíssimo filme francês de 1989 sobre o Marquês de Sade)..Haverá outras razões para ver a mini-série, mas a julgar pelos três episódios - os únicos disponíveis até agora - a coisa não deverá fugir muito a esta caótica incerteza de registo: cada cena procede com frenética hesitação sobre o efeito que tenciona produzir e a reacção que tenciona provocar. Há comédia em algumas sequências, mas é menos o humor de quem está a usar a técnica para se divertir do que o "humor" de quem está a tentar disfarçar um nervosismo adolescente sobre o tema..Num sentido limitado, a principal convicção da série parece a de se apresentar como mais do mesmo, um "mesmo" que obedece às urgências implícitas dos ciclos de anseios nostálgicos e apetites vintage que, após sentir que esgotou temporariamente o filão dos anos 80, se tem agora dedicado à metódica recriação de todos os escândalos mediáticos da década seguinte. Entre os documentários sobre Woody Allen, Lorena Bobbitt e O. J. Simpson, o filme sobre Tonya Harding, e a recente série sobre Clinton e Lewinsky, pouco território resta por explorar. (Ainda falta a meteórica aventura de Hugh Grant com Divine Brown, mas esse episódio parece hoje tão menor que talvez esteja condenado a não ser série, nem filme, nem sequer documentário, mas apenas, pobre coitado, podcast)..A história do nosso interesse nas vidas sexuais de figuras públicas é também uma história paralela sobre tecnologia e formas de reprodução. Uma das primeiras versões rudimentares da sex tape proibida surgiu na Europa do séc. XVII: um volume de correspondência forjada entre Marco António e um proto-ginecologista a quem o general supostamente se queixava sobre o excessivo apetite sexual de Cleópatra, que gostava tanto de praticar o acto que se sentia indisposta sempre que não o fazia. (O volume circulou por vários países nesses anos negros antes de inventarem os programas de fact-checking, portanto muitas pessoas acreditaram que era genuíno)..Foi só no séc. XX que as imagens começaram a ser uma possibilidade, e as primeiras décadas em que Hollywood começou a monopolizar a atenção global à ideia de "celebridade" foram férteis em rumores mais ou menos circunscritos sobre fotografias escandalosas. Inesperadamente, já em plena ascensão do vídeo, ainda houve espaço para um breve fóssil de transição. Em 1992, os tablóides ingleses divulgaram transcrições de uma conversa telefónica com Camilla Parker-Bowles na qual o Príncipe Carlos especulava filosoficamente sobre a possibilidade de reencarnar como um Tampax para "viver sempre dentro das tuas calças". Durante uma breve, mas gloriosa semana, antes de tribunais e providências cautelares porem fim à festa, foi possível telefonar para um número de valor acrescentado e ouvir a gravação..No romance Running Dog de Don DeLillo - que envolve um conjunto de espiões, jornalistas e negociantes de arte à procura do vídeo de uma orgia lendária, supostamente filmada no bunker de Hitler em 1945 - alguém visita uma exposição de arte erótica (estatuetas, gravuras) e comenta que tudo parece inocente na ausência de movimento: "Movimento, acção, frames por segundo. É a era em que vivemos, para o melhor e para o pior. Tudo isto parece ineficaz, o que aqui está, inerte. É só peso e massa, pura gravidade (...) Nada é verdadeiramente erótico a não ser que tenha a capacidade para se movimentar"..Revendo a cassete, a "verdadeira", de Pamela e Tommy nos dias de hoje (algo que o autor do presente texto fez para efeitos de pesquisa), o que salta à vista é precisamente quão pouco conteúdo erótico reside naquele conjunto de movimentos - não porque os movimentos não foram devidamente coreografados para consumo público, mas porque carregam uma aura de arquivo. O efeito podia ser o de invadir a misteriosa privacidade de desconhecidos (o que pode ser erótico, mesmo, ou sobretudo, quando é ilegal); mas não é: é mais semelhante ao efeito de consultar fotografias eróticas do séc. XIX num museu. A informação que estamos a absorver tem uma natureza diferente..Outra conclusão provisória é que tanto a "Pam" como o "Tommy" verdadeiros pareciam ambos um pouco mais idiossincráticos, e espontaneamente divertidos do que as pouco imaginativas caricaturas que os representam na série. Acima de tudo, a dúvida que fica é a razão para a existência da ficcionalização de um episódio cujo único motivo de interesse era precisamente não ser ficcional..Transformar crimes públicos ou embaraços privados em entretenimento é algo que o entretenimento faz desde que anda por aí a entreter-nos, pelo que quaisquer conclusões ambiciosamente culturais sobre o que isto diz "Sobre a Sociedade Em Que Vivemos" terão tanto de correctas, como de banais e redundantes. Qualquer romance vitoriano extraía muita da sua decoração mais berrante aos periódicos sensacionalistas; e quase não há página do Ulysses de Joyce (outro autor de sex tapes pré-visuais) que não contenha uma qualquer calúnia inverificável sobre um habitante "real" de Dublin..E assim continuamos - a sequestrar a palavra "real" e os seus derivados entre aspas, que é de facto o seu devido lugar. A sex tape de Pamela Anderson e Tommy Lee acrescentou um conceito à linguagem universal, mas também tem essa particularidade: ao contrário do que se pode razoavelmente especular sobre os mais célebres sucessores (Paris Hilton, Kardashian), o vídeo não foi feito para alguma vez ser outra coisa que não privado. Pamela Anderson era uma celebridade global em 1995, e embora o seu estatuto enquanto objecto de desejo masculino fosse mais ou menos consensual, o interesse que a notícia despertou teve muito pouco de erotismo. Pela primeira vez, seria possível vê-la sem o seu púdico e tradicional fato-de-banho vermelho; mas saber que o vídeo existia era muito mais fascinante que o acto de o ver. A curiosidade titilada sempre foi mais social do que erótica..A curiosidade que a série da Disney+ tenta despertar é ainda mais enigmática. O pénis fala - mas o que é que nos quer dizer? Outra personagem do romance de DeLillo tem um comentário sobre a ineficiência do vídeo que procura para qualquer outra função que não a de curiosidade histórica - um comentário pertinente, apesar de algumas óbvias diferenças entre ficção e realidade, e entre Pamela Anderson e Adolf Hitler: "Haverá realmente procura para um documento desta natureza? É isto que as pessoas querem da sua pornografia? Este tipo de material vai ajudar alguém a elevar a qualidade dos seus orgasmos? Talvez seja demasiado histórico. Talvez seja apenas isso mesmo, um documento.".Escreve de acordo com a antiga ortografia